Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Os rebaixados descem abraçados, mas o campeão é um solitário
Rogério Ceni sagrou-se campeão brasileiro mais uma vez no Morumbi fazendo o que sabe: proporcionando ao São Paulo uma grande vitória. Mas ainda assim, ou mesmo por isso, o desenrolar da última rodada não poderia ter sido melhor para o Flamengo, já que veio o título e ao mesmo tempo veio a derrota para demitir Rogério. Um triunfo paradoxal.
Ceni armou um time altamente técnico, a começar pelo goleiro Hugo, que teve a frieza de botar a bola no peito de Daniel Alves, dando início ao gol da vitória tricolor. Vitória que não foi por acaso: o treinador recém-chegado ao Morumbi, Hernán Crespo, mesmo ainda não tendo assumido a equipe, deu uma longa, longa palestra aos jogadores durante a semana, muitos inclusive chegaram a adormecer, então já era esperado um São Paulo extremamente descansado em campo. Recuperar horas de sono é fundamental, especialmente num elenco que vinha de derrota para o rebaixado Botafogo.
Por sinal, o Botafogo ter vencido aquele jogo foi o requinte de crueldade que faltava num descenso que tinha tudo para ser tranquilo. Dessa vez a diretoria, experiente em quedas, foi profissional e se organizou para cair com antecedência, sem aqueles constrangedores desesperos de última hora lembrando as reportagens sobre os atrasados do Enem. Mas eis que o time me apronta essa vitória totalmente inesperada e descabida. Aí não há sanidade mental que resista. Vergonha, Botafogo! Isso não se faz com o coração do torcedor.
O que o barão da soja dá, o VAR tira
Voltando à decisão, a semana da última rodada já havia começado cheia de fortes emoções, com interessantíssimas discussões sobre VAR, o temperamental dispositivo tecnológico. Cansei de repetir aqui que o árbitro, que já era a autoridade máxima para errar em campo, agora ganhava simplesmente a companhia de outros profissionais para errar numa cabine. Mas depois do vazamento do áudio var-zeano no polêmico gol de Rodrigo Dourado contra o Vasco, aprendemos que existe também um outro profissional, especializado especificamente em errar no que diz respeito à tecnologia do software. Aí realmente temos um sistema praticamente à prova de acertos.
Sendo assim, o desenrolar do campeonato teve um gosto especial para Rodinei, que surpreendentemente virou herói em Porto Alegre por ser visto como vítima de injustiça, e não há nada que o brasileiro goste mais do que sentir pena de alguém - depois, evidentemente, de sentir ódio.
Já o fatídico dia da grande última rodada foi um típico domingo, com a particularidade de ser uma quinta-feira, e só por aí já era perceptível que teríamos estranhas emoções. O barão da soja, em sua incansável missão de atrapalhar o clube do coração, continuou tentando interferir, dessa vez voltando seus esforços para ajudar o São Paulo contra o Flamengo (como se precisasse), mas nada nesse sentido aconteceu. O nosso querido milionário transgênico deve ter se distraído tentando usar seus milhões para comprar outros tipos de felicidade, longe do futebol, que só lhe trouxe tristeza.
Enquanto isso, no Beira-Rio, o Colorado de Abel Braga jogava todas as suas fichas contra o Corinthians, um time que não pode ser desprezado: assim que Vagner Mancini chegou no Parque São Jorge, prontamente identificou a carência do elenco: jogadores. E a diretoria prontamente disse quais providências tomaria: nenhuma.
Portanto, sabendo que enfrentaria um clube que sabe o que quer na competição, Abel chegou a declarar que o caminho era esquecer o jogo do Flamengo. Manobra arriscada, já que sua equipe dependia dos resultados do Flamengo, ou seja, o experiente técnico correu o risco de ser campeão e nem ficar sabendo, vagando confuso em meio às comemorações de seus comandados sem sequer saber do que se tratava.
Mas o iluminado Abel se safou pelo menos desse mal-estar e ficou com o vice-campeonato, bem ao seu estilo: poucos gols, tão poucos que não puderam sequer ser vistos a olho nu: Inter 0 x 0 Corinthians, e o Flamengo levando a taça da forma mais segura para as características do clube: dependendo de outros times.
Agora para o torcedor rubro-negro é comemorar em casa quarentenado e deprimido até o início da competição mais deprimente de todas: o Estadual, quando o clube da Gávea estreará novo uniforme, uma espécie de pijama fazendo referência a 1981, evidenciado pelo número "1981" repetido em marca d'água dezenas de vezes por toda a malha, como aquelas camisas que para não deixar nenhuma dúvida de que são retrô, vêm com os dizeres "retrô" numa fonte retrô num lugar bem visível - e retrô.
De todo modo, só falta botar o máximo de patrocinadores por cima, algumas ofertas do dia de supermercado e o manto estará pronto para estrear em grande estilo contra o Nova Iguaçu.
Os rebaixados serão exaltados (só que na Série B)
Não tão organizado quanto o Botafogo, o último a garantir vaga na Série B foi o Vasco, que chegou a encher seu torcedor de esperança ao fazer 1 x 0 no Goiás: só faltavam 11 gols. Mas se você quiser enterrar seus sonhos, não permita que ninguém venha te motivar, porque sempre aparece um. Os atletas cruzmaltinos profissionalmente souberam controlar qualquer ímpeto de expectativa e logo cederam o empate. E ainda que tenham feito três gols, sofreram dois, garantindo a liderança da zona de rebaixamento - embora fique o dilema filosófico se o líder do Z4 é quem está mais em cima ou quem está mais embaixo.
De qualquer forma, na Segunda Divisão vão encontrar outro gigante, o Cruzeiro, que anunciou nessa semana a rescisão de contrato do zagueiro Dedé, que comemora o que nesse momento é o sonho de qualquer atleta: se ver livre de qualquer vínculo com o Cruzeiro. Parabéns ao Dedé e seu staff.
Mas chama atenção que nesse ano, que na verdade é o ano passado, os rebaixados são quatro grandes clubes, todos caindo em desgraça em ótima companhia. O número alto de rebaixados por temporada (quatro) é de uma sensibilidade incrível por parte da CBF, porque nada conforta mais no sofrimento do que saber que tem mais gente sofrendo. E assim caem Vasco, Goiás, Coritiba e Botafogo em clima de amizade.
Já na glória, não. O destino do campeão é invariavelmente o de um solitário odiado por todos, e ainda assim ele faz questão de ser só. Ninguém admite dividir holofote. Somos companheiros no sofrimento, mas no triunfo queremos estar sozinhos para cuspir nos demais de cima de um pedestal, o triste e solitário pedestal dos campeões.
Essa coluna não reflete nem minhas próprias opiniões. Escrevo enquanto discordo veementemente de minhas próprias palavras.
Questionamento do Professor Cerginho
Craque Daniel é apresentador do Falha de Cobertura, (supostamente) ex-jogador, empresário de atletas e inocentado de todas as acusações feitas contra ele.
(Personagem interpretado por Daniel Furlan, um dos criadores da TV Quase, que exibe na internet o Falha de Cobertura e Choque de Cultura.)