Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Na beira do caos
Não há drenagem de estádio que estanque a tempestade de óbitos pela qual o país atravessa durante essa fase da pandemia, mas ainda assim Palmeiras e Grêmio foram ao Palestra Itália disputar a final da Copa do Brasil, na beira do caos.
Como sempre, nesses tempos, um jogo atípico: sem torcida, sem poder abraçar durante uma comemoração e sem poder cuspir durante uma briga (ou comemoração). Tudo compreensível, porém me parece antinatural impedir um atleta profissional de cuspir em seu adversário, desde que respeitando-se todos os protocolos. Como se espera que os jogadores comemorem o título agora? Cuspindo nos próprios companheiros? Em si mesmos? Em seus familiares?
Isso ainda numa semana difícil, onde os palmeirenses foram implacavelmente magoados por um mosaico em Itaquera em alusão à sua ausência de mundiais. E como não poderia deixar de ser nessa grande sexta-série na qual se transformou o Brasil, o Ministério Público foi acionado, e não só determinou que a provocação fosse desfeita, como já estuda um projeto de lei onde os rivais não possam mais fazer gols no Palmeiras, o que poderia ser considerado provocação. O Grêmio, precavido, se adiantou: fez de tudo para não cometer nenhum gol no adversário, e obteve sucesso nas duas partidas.
Sendo assim, o Palmeiras merecidamente sagrou-se campeão da "Copa Continental do Brasil", nomenclatura com uma contradição geográfica que não se via desde ET Bilu, "o extraterrestre brasileiro". Destaque para Felipe Melo, que se superou em sua tradicional entrevista amargurada de celebração de título, demonstrando uma estranha obsessão ao desenterrar alguma resposta a um comentário do Kaká numa foto de sua rede social, resposta que questionava um elogio feito a ele. Enquanto os psicologicamente estáveis descansam, esse é o nível de neurose que produz vencedores. Felipe Melo não se cansa de levantar troféus no Palestra, ao passo que os profissionais ditos mentalmente equilibrados, como o músico Armandinho, seguem em jejum de títulos.
E um detalhe curioso: a conquista alviverde acabou colocando o Fluminense na fase de grupos da Libertadores, resultado muito comemorado pelos jogadores com uma descontraída derrota por 3 x 0 para a Portuguesa Carioca. Parabéns a todos.
Numa piração total
A partida em si pode ser resumida num verdadeiro embate mental entre os dois treinadores, que assim como todo embate mental com a presença do goleiro Paulo Victor, foi decidido com falhas do goleiro Paulo Victor. À parte disso, vimos um Abel Ferreira extremamente pensativo olhando fixamente para o chão, provavelmente arrependido de ter vindo para o caótico Brasil, ou procurando alguma coisa, talvez um piercing que possa ter caído do mamilo durante uma comemoração. É muito mais comum do que se imagina.
Já Renato, assim que saiu o primeiro gol do Palmeiras, pegou prontamente a lista de atletas disponíveis na reserva, ou seja, nem ele lembrava quem eram os reservas do Grêmio. Compreensível, já que naquele estado de ódio puro em ebulição, provavelmente nem os próprios reservas do Grêmio lembravam quem eram - ou lembram quem são. Quando você pede para um Jean Pyerre aquecer, por exemplo, primeiro você tem que avisá-lo de que ele é o Jean Pyerre, para aí sim ele aceitar participar de alguma atividade. Esse é o drama do técnico Renato.
Portanto é compreensível que o treinador esteja cansado dessa rotina e queira ser derrotado em outros ares. Não podemos nos esquecer que o futebol é uma profissão como qualquer outra, onde o profissional tem o direito de perder onde quiser, e o outrora interessado Atlético Mineiro parecia o ambiente ideal para esse ambicioso projeto - antes de confirmar a volta de Cuca. Agora o destino de Portaluppi parece mesmo a praia.
O fato é que bem ou mal, o Tricolor Gaúcho ainda chega em todas as competições, o que se tornou um verdadeiro martírio para sua torcida, do jeito que tem sido. A reformulação tem que passar por um novo perfil de técnico para conduzir a equipe a eliminações mais precoces, alguém com um pensamento compatível com o futebol e o mundo de hoje. E quando falamos isso, o nome que vem naturalmente à mesa é o do treinador e compositor Ney Franco, autor do profético hino de uma geração, "Na Beira do Caos". Como certa vez disseram sabiamente os lábios de Ney, que agora são de todo um país, "Tava na beira do caos, tava na beira do mal - numa piração total." Difícil discordar.
Com o fim da temporada (e possivelmente do futebol ou do país Brasil, o que acontecer primeiro), chega ao fim minha sequência de colunas. Obrigado a todos que caminharam essa caminhada ao meu lado. Possivelmente nos veremos quando esse espaço aqui for retomado num momento mais interessante e apropriado.
Essa coluna não reflete nem minhas próprias opiniões. Escrevo enquanto discordo veementemente de minhas próprias palavras.
Craque Daniel é apresentador do Falha de Cobertura, (supostamente) ex-jogador, empresário de atletas e inocentado de todas as acusações feitas contra ele. (Personagem interpretado por Daniel Furlan, um dos criadores da TV Quase, que exibe na internet o Falha de Cobertura e Choque de Cultura.)