Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
As marcas que não podem ficar invisíveis na tragédia de São Sebastião
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Quando descia a serra na quinta-feira passada, não imaginava que ficaria a poucos metros da maior tragédia recente de São Sebastião. Já são mais de 50 mortos e uma devastação que deixa muitas marcas que às vezes parecem invisíveis para o grande público e que ficaram muito claras para mim nas voltas que dei na Barra do Sahy após o sábado com a chuva de mais de 600 milímetros. Não é só dar segundos de atenção e achar que as pessoas ficarão para sempre em abrigos provisórios.
O barulho do temporal era tão grande que era simplesmente impossível ouvir qualquer coisa além da água caindo. Mal podia imaginar que enquanto fazia planos com meus amigos para salvar móveis e eletrodomésticos, o morro a poucos metros da casa de onde estava desabava para acabar com a vida de alguns e mudar definitivamente a de outros.
Passava das 4h da manhã, e a água dominou completamente o quintal, passando a altura da canela. Foram centímetros de entrar na sala e na cozinha. Acordamos sem luz, sem telefone e sem internet. Só deu para ter ideia quando saímos de casa e vimos o barro tomando conta do centro, pessoas completamente sujas de lama andando em busca de ajuda e uma fila gigante no supermercado.
A cada roda de pessoa no centro, os relatos eram piores. Gente chorando, gente fugindo com as malas e transformando a areia em um porto tentando sair dali por meio dos barcos de pescadores. Parecia cena de filme de guerra, com os dois morros que delimitam a praia do Sahy com as marcas da batalha. Estávamos ilhados com as interdições dos dois lados da estrada.
Dias depois do temporal, conversei com alguns locais, um deles que me impactou muito. Ele fazia trabalhos de jardinagem nas casas de veraneio e estava lá há mais de 30 anos. "A lama ficou tão dura com o passar dos dias que as máquinas usadas eram mais pesadas. Uma delas foi tirar parte do barro e trouxe junto um corpo e acabou perfurando a vítima. Achamos corpos despedaçados, um deles tinha sido atingido por uma árvore", contou.
Se para mim foi impactante ver corpos no saco prateado sendo carregados para o helicóptero do exército, imagina o que não vai ser essa imagem para as dezenas de moradores que viveram essa experiência?
"Tem que ter muito estômago para ficar ali ajudando a comunidade. Imagina ver o cachorro em cima da casa coberta por lama chorando que nem uma criança. Ele sabia que ali embaixo estavam as sete pessoas da casa onde ele morava".
Por vezes, ele olhava para cima, para o chão, para o nada. O olhar era vazio. "Está difícil voltar para a casa porque o cheiro está forte. Não só da água e da lama, mas também dos corpos que ainda estão ali e começam a se decompor. Esses números aí não são nem de perto os de verdade", relatou.
Fico pensando como fica a cabeça dele para voltar a viver novamente no pé da montanha. Será que ele vai conseguir dormir tranquilo novamente a cada trovão que ouvir? Se a saúde mental é tão desprezada mesmo entre os que mais têm dinheiro, imagina como vai ser no caso dele, que não chega nem perto de poder arcar com esses custos?
"Tinha uma casa com quase 10 pessoas e dois não morreram porque estavam no bar tomando uma. E o menino que se salvou, mas a família inteira morreu? Quem vai ficar com ele. Acho que a assistência social".
Em um dos supermercados, uma caixa relatou que teve de brigar com clientes que juravam que os preços estavam mais altos do que o praticado para aproveitar a tragédia. Uma outra moradora que estava lá interrompeu a minha conversa para falar: "o caos tomou conta, um monte de mentira, de história criada. O mercado aqui do centro sempre foi mais caro do que o da Vila, mas o de lá está fechado e agora as pessoas estão aqui. Todo mundo está à flor da pele".
Na volta para São Paulo, consegui pegar o trecho mais afetado pelos deslizamentos. No caminho, saindo do Sahy, vi uma parte de Juquehy devastada, vários carros no sentido contrário ignorando o caos e rumando para as praias, mas tantos outros carregados de doações.
A tendência é que o tempo tire das manchetes dos noticiários os dramas vividos por aquela população, mas é fundamental que não só o Governo continue apoiando, mas que também a população ajude seja financeiramente, por meio de institutos como o Verde Escola ou Gerando Falcões, mas também doando roupas, águas, comidas e produtos de limpeza. Tudo por ali está em falta. E não pode faltar também a compaixão.
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