Ex-diretora relata à Justiça 'ambiente doentio' para mulheres na CBF
Luísa Rosa, primeira diretora da história da CBF, abriu processo na Justiça do Rio de Janeiro acusando a entidade de criar um ambiente "doentio", "desconfortável e hostil" para mulheres. Os documentos também envolvem acusações de assédio moral e sexual. A CBF nega (veja as respostas dadas pela entidade logo abaixo das acusações).
As acusações: desprestígio e assédios
Cargo ocupado por Luísa era de fachada. Enquanto a diretora posava como a primeira mulher a ocupar um cargo de comando, dentro da CBF ela não tinha autonomia para contratar a própria equipe. Ela cita como exemplo as contratações de dois gerentes, que teriam sido aprovadas por Ednaldo Rodrigues em um momento e desautorizadas depois que ambos já tinham começado a trabalhar.
Luísa diz que deixou de ser atendida por Ednaldo antes de ser demitida. Ela reclamou a colegas que passou "oito meses" sem que o presidente aceitasse se reunir com ela. No lugar, despachava com outros diretores ou com funcionários que estavam hierarquicamente abaixo de sua posição —ou que nem mesmo cargo tinham na entidade.
A contratação de Arnoldo Nazareth, dirigente do Amazonas, esvaziou as funções de sua diretoria. O comunicado do RH diz que Nazareth passava a ser o responsável por "demandas internas da sede" e que a diretoria de infraestrutura, ocupada por Luísa, seguiria com os "projetos de construção de Centros de treinamento, vistorias técnicas, legado Fifa, dentre outros".
Ela diz que a chegada de Arnoldo representou a criação de um cargo de chefia acima dela e um corte de equipe. Em mensagem enviada a um colega, ela diz: "Ganhei o Arnoldo de chefe ontem, 1 hora depois tirou 1/3 da minha equipe sem me consultar e sem me dar satisfação. Ainda em choque, confesso".
Luísa diz que sofreu humilhações na entidade, principalmente por causa do ambiente criado pelos outros diretores, todos homens. A arquiteta relata que o ambiente na CBF era cheio de "comentários misóginos e inconvenientes".
Ouviu os dirigentes falando sobre "a contratação de prostitutas para servir os convidados da CBF em eventos". Ela aponta que os membros da diretoria abordavam o tema durante as refeições em que ela estava presente. "Era obrigada a almoçar enquanto os diretores falavam sobre as prostitutas que seriam contratadas para acompanhar visitantes e convidados pós-eventos", escrevem os advogados da ex-diretora.
Luísa evitava viagens de trabalho no mesmo veículo que outros diretores. Segundo ela, era "constantemente 'convidada' a sair para almoços e jantares com diretores fora do local de trabalho". Pelo mesmo motivo, solicitou auxílio-alimentação para não ter de almoçar mais com os demais membros da diretoria no refeitório da entidade.
A ex-diretora também diz que conviveu com mentiras sobre sua vida pessoal. A pior delas, um boato de que ela teria um relacionamento com outro diretor.
Uma psicóloga afirma que Luisa "passou a apresentar sintomas de burnout e ansiedade desencadeado por experiências no ambiente de trabalho". Ela foi promovida ao cargo em abril de 2022 e demitida em julho de 2023.
Luísa apresentou denúncias ao departamento de compliance e ao Comitê de Ética da CBF. Nenhuma foi aceita. Elas falam sobre os desmandos em seu departamento e não citam assédio moral e sexual. O processo na Justiça do Trabalho do Rio de Janeiro traz a nova camada de acusações.
CBF: "denúncias não tinham respaldo em documentos ou nos relatos"
A CBF disse que as denúncias feitas na Comissão de Ética e na Diretoria de Governança e Compliance foram analisadas, e medidas foram tomadas. Em nota enviada ao UOL, fala que Luísa "foi bem sucedida nas missões a ela confiadas, essenciais à estrutura de apoio do futebol no país".
O Comitê de Ética determinou a suspensão de um contrato e o compliance após "investigação que seguiu critérios rígidos de ética e diligência concluiu, conforme registra o relatório final, que as denúncias não tinham respaldo em documentos ou nos relatos de testemunhas e colegas de trabalho".
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Quero receberSobre as recusas de Ednaldo receber a diretora: a CBF diz que a estrutura da entidade é complexa e que "as agendas dos gestores com o presidente obedecem a critérios variados, como urgência, disponibilidade e presença do dirigente na sede".
Sobre os despachos com outras pessoas: "Reuniões dinâmicas e compartilhadas com outros diretores não são raras e nem se aplicam exclusivamente a determinado setor. São impositivas para agilizar decisões, otimizar agendas e compartilhar impactos com outros setores eventualmente afetados. No mais, comunicações por e-mail, telefone ou WhatsApp sempre foram prontamente atendidas pelo presidente."
Você pode ler na íntegra a nota da CBF no final da matéria.
Os detalhes: trocas de mensagens são usadas como provas
Em prints de conversas pelo WhatsApp, Luisa mostra sequências de mensagens que comprovariam o cargo esvaziado e os casos de assédio:
Despachos com Ednaldo
Mensagens enviadas por Luísa não respondidas por até cinco dias com pedidos de reunião com Ednaldo Rodrigues. Quando o presidente respondia, delegava os despachos:
- "Solicito que se possível pudesse ser tratado referidos assuntos com Dr. Hélio Menezes - Diretor de conformidade e Compliance e Dra. Joyce Nascimento, de forma que citados temas tenham a devida celeridade", fala o presidente após questionamento sobre a continuação da reforma na sede.
- "Estava acompanhando o jogo do Vitória", responde Ednaldo quando Luisa diz que precisava falar com o presidente e escreve que tentou ligar para ele duas vezes.
- "Hoje minha agenda está totalmente preenchida com demandas externas e internas", disse Ednaldo após Luisa pedir uma conversa.
Ambiente de assédio
O documento também faz acusações de assédio e fala em cantadas e conversas impróprias. Seus advogados dizem na petição inicial que mensagens com os colegas corroboram e "reconhecem o ambiente doentio no qual viviam" dentro da CBF. Um dos exemplos desse reconhecimento veio, segundo os advogados, em troca de mensagens ocorrida na noite de 28 de janeiro de 2023, transcrita abaixo:
Colega: Por que você não tá aqui com os outros?
Luísa: Onde?
Colega: No italiano.
Luísa: Eu estou. Mandaram eu sentar aqui fora, que não tinha lugar dentro.
Colega: Ahhh, ufa. Tá bom.
Luísa: E também fugindo do XXXX* hahaha.
Colega: Pqp. Eu saquei ontem. Pqp. Tadinha. To aqui se precisar de segurança kkk.
Luísa: Pois é! Hoje, foi pior. Mais direto.Me fingi de tonta rs. Obrigada, pode deixar.
Colega: kkkk mulher sofre, tenho consciência disso. Ainda mais quando o cara não tem noção e ainda se sente seguro.
Luísa: Como diria Dona Maria Amélia Vidigal, infelizmente: você decidiu largar um escritório de arquitetura de gente educada para trabalhar com gente mal-educada.
Luísa: Exceções obviamente (mensagem anexada acaba aqui).
Colega: Eu sei, linda. Realmente, o nível é muito baixo. Dona Maria Amélia tem razão. Bom domingo! Beijos.
*Nome preservado
O homem mencionado na conversa em questão seria um dos que assediavam Luísa na CBF e possuía um cargo de confiança do presidente Ednaldo. "O assédio era de conhecimento de todos, sendo expressado pelo sr. 'Colega', bem como pelo sr. 'Colega nº 2', dizendo ter percebido assédios realizados pelo 'Colega nº 3'", escrevem os advogados.
Pelos arquivos anexados, ela e um colega costumavam ter várias conversas por Whatsapp. No dia 1 de fevereiro de 2023, por exemplo, ela recebeu essa mensagem: "Sei que amigo de trabalho não pode falar certas coisas. Mas é coisa boa. Hoje, você estava muito elegante e bonita. Se diverte aí com suas amigas. Beijo."
Contratações anuladas
Depois de definir sua equipe, Luísa soube que Ednaldo teria vetado a contratação de dois gerentes. Isso teria acontecido após os dois já terem começado a trabalhar, com anuência do próprio presidente. Ela anexa uma conversa com um funcionário do RH da CBF sobre o caso:
Funcionário do RH: Ontem o presidente me chamou para conversar e falei sobre as novas contratações para sua área. Na segunda, ele vai querer conversar com a gente porque, para ele, o valor que oferecemos foi 'alto'. E vai tentar entender 'pq estamos contratando 2 gerentes'. Eu sei que você já tinha alinhado tudo isso com ele e havia me passado. Entendo que será preciso mostrar que não há na CBF com estes skills e que o Tiago tb não tinha experiência necessária ainda para ocupar a cadeira. Só para estarmos alinhados, tá?
Luisa: Entendi. Eu expliquei para 2x no caso do organograma. Inclusive cortei depois e falamos de mais pessoas entrarem depois. Na CBF não tinha ninguém. É cargo técnico, até procurei arquiteto e engenheiro que trabalhasse dento (da entidade). Eu não criei vaga nova nenhuma, ele entendeu que eu repus a minha (vaga) e a do Marquinhos?
Funcionário: Sim, eu to super ciente.
Luisa: Quanto ao valor, deu menos até, não foi? Que o que estava no planejamento do RH, digo naquela planilha."
Diagnóstico de burnout
Os documentos mostram que Luísa desenvolveu transtorno de ansiedade e crises de depressão, com episódios de choro, síndrome de burnout e descontrole emocional "desencadeados por experiências no ambiente de trabalho". O diagnóstico é de agosto de 2022.
No processo, ela afirmou que o presidente Ednaldo "era um dos responsáveis pelos danos que estava sofrendo" e que "tinha certeza que ele tinha plena ciência".
Mensagens trocadas entre Luisa e outro diretor mostram que ela reclamava do ambiente na CBF, pelo menos, desde setembro de 2022. Em uma das primeiras queixas, diz que, na noite anterior, mesmo tendo ficado até 21h na CBF esperando para despachar com Ednaldo, foi ignorada.
Em abril de 2023, diz que não é atendida pelo presidente "há 8 meses". Em resposta a algumas mensagens, colegas de trabalho confirmam a alegação de Luísa de que o ambiente era ruim para as mulheres que trabalham na CBF.
Luisa foi demitida no dia 5 de julho de 2023 sob a alegação de ter vazado os documentos à imprensa. Ela conta que saiu escoltada da CBF por outros três funcionários, que a advertiram que "não poderiam deixar ela mexer em nada" ou sequer "tocar em seu computador". Precisou devolver o celular imediatamente, em "situação constrangedora e de tamanha coação".
A CBF diz que a saída de Luisa seguiu "procedimento padrão, acompanhado pelo técnico de informática e por uma gestora de Recursos Humanos, que prestou apoio à ex-diretora, inclusive emocional. Luísa teve acesso ao seu computador antes de devolvê-lo e pôde copiar, selecionar e salvar todos os arquivos e documentos que achasse necessários."
Leia a nota da CBF na íntegra:
A arquiteta Luísa Xavier Rosa foi promovida à diretora de Patrimônio e Infraestrutura da CBF em abril de 2022, por mérito, devido ao competente trabalho que vinha executando na gerência do departamento e aos resultados apresentados, bem como ao interesse da colaboradora em ascender na carreira, formalizado pela própria em e-mail enviado à presidência àquela época.
Ela permaneceu no cargo até deixar a confederação, em julho passado, e foi bem sucedida nas missões a ela confiadas, essenciais à estrutura de apoio do futebol no país.
A Confederação Brasileira de Futebol possui uma estrutura complexa de administração, cuja gestão é compartilhada por 11 diretorias encarregadas desde a gerência de clubes e dos campeonatos até a estrutura física de suas várias instalações, função esta que era delegada a Luísa.
Assim, as agendas dos gestores com o presidente obedecem a critérios variados, como urgência, disponibilidade e presença do dirigente na sede. Reuniões dinâmicas e compartilhadas com outros diretores não são raras e nem se aplicam exclusivamente a determinado setor. São impositivas para agilizar decisões, otimizar agendas e compartilhar impactos com outros setores eventualmente afetados. No mais, comunicações por e-mail, telefone ou WhatsApp sempre foram prontamente atendidas pelo presidente.
Sobre as denúncias em tela, importante esclarecer que Luísa Xavier Rosa apresentou queixa à Comissão de Ética do Futebol Brasileiro e à Diretoria de Governança e Conformidade da CBF em maio de 2023, relatando que o então gerente de manutenção, Arnoldo Nazareth, estaria interferindo no processo de contratação de uma empreiteira, função que seria exclusiva ao seu cargo. A denúncia foi prontamente acolhida pela diretoria e, apenas dois dias depois, a diretora foi formalmente informada que deveria suspender o contrato questionado e escolher outra empresa para concluir os trabalhos, e que constituiria um procedimento interno para apurar suas alegações.
A investigação, conduzida pelo Conselho de Governança Corporativa da entidade, seguiu critérios rígidos de ética e diligência e concluiu, conforme registra o relatório final, que as denúncias não tinham respaldo em documentos ou nos relatos de testemunhas e colegas de trabalho. Note-se que não há, na denúncia em questão, qualquer menção à ocorrência de assédio sexual, sendo sua queixa exclusivamente relacionada à sobreposição de funções.
O processo de desligamento da arquiteta da CBF seguiu procedimento padrão, acompanhado pelo técnico de informática e por uma gestora de Recursos Humanos, que prestou apoio à ex-diretora, inclusive emocional. Luísa teve acesso ao seu computador antes de devolvê-lo e pôde copiar, selecionar e salvar todos os arquivos e documentos que achasse necessários.
Expostos os fatos, vale ressaltar que a CBF repudia veementemente qualquer tipo de assédio moral ou sexual dentro e fora de suas dependências. Desde que assumiu a presidência, em 2021, e diante de um histórico recente de acusações do tipo, Ednaldo Rodrigues tem envidado todos os esforços para colocar a entidade e o futebol brasileiro em linha com as melhores práticas de governança, incluindo equidade, isonomia, integridade e respeito.
Parte desse esforço foi a implementação, no início de 2023, do Programa de Combate e Prevenção à Qualquer Discriminação no Ambiente de Trabalho, com o objetivo de identificar fragilidades, combater comportamentos impróprios e educar para a prevenção de assédios. O programa é desenvolvido por uma empresa profissional terceirizada. Atualmente, a CBF tem 100% da sua equipe treinada a respeito do tema.
A fase atual é a de discussão e implantação de um Código de Ética e Conduta específico para o corpo funcional e de implantação de um canal de denúncia externo, com garantia do anonimato. Segundo o diagnóstico inicial, a CBF tem hoje no seu quadro 52,73% de homem cisgênero e 42,27% de mulher cisgênero, além de 6,82% que se identificam como pertencentes à comunidade LGBTQIAPN+. O esforço segue no sentido de aproximar ainda mais os indicadores de gênero e proporcionar segurança, conforto e tratamento digno e respeitoso a todos os colaboradores.
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