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Eliana Alves Cruz

Aída, uma ópera olímpica

A brasileira Aída dos Santos foi quarta colocada no salto em altura, mesmo sem contar com um treinador - Arquivo Folha
A brasileira Aída dos Santos foi quarta colocada no salto em altura, mesmo sem contar com um treinador Imagem: Arquivo Folha

28/07/2020 04h00

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Na última coluna trouxe Melânia Luz, a primeira atleta negra a integrar uma seleção olímpica brasileira. Pensei em mudar radicalmente de tema, mas a proximidade com o 25 de julho — dia dedicado a mulher negra latino-americana e caribenha — fez com que eu trouxesse mais uma personagem: Aída dos Santos. Esta, ao contrário de Melânia, é conhecida de muita gente, mas sua história é alegoria para tantas coisas que nos formaram, que parece inventada por algum roteirista ou escritor de ficção.

Escrevo ficção. Escrevo romances históricos e se fosse começar um romance inspirado na atleta negra e periférica que foi a primeira finalista olímpica brasileira nos Jogos de Tóquio, em 1964, teria este título, pois a trajetória de Aída dos Santos tem notas de grandes óperas.

A obra musical do italiano Giuseppe Verdi fala de um amor proibido entre a protagonista que é a escravizada Aída e um oficial egípcio chamado Ramsés. O conflito vivido pela brasileira também fala de amor. Amor pelo esporte. Essa paixão deu a ela determinação para lutar contra adversidades muito fáceis de contornar caso a delegação brasileira a tivesse levado a sério. O descaso em relação ao talento de Aída só não se tornou uma muralha intransponível porque ela decidiu não deixar passar a chance de sua vida.

Aída começou a treinar só para não voltar a pé para casa. Uma amiga que lhe dava carona para o Morro do Arroz, em Niterói, foi enfática: "Ou treina comigo ou volta a pé para casa". A primeira pedreira a ser quebrada estava dentro de casa. Ela levou uma surra do pai depois do primeiro treino, afinal, "pobre tem que ganhar a vida e você não ganhou dinheiro nenhum fazendo isso". A filha de lavadeira no Rio de Janeiro não deu meia volta nem depois do castigo e muito menos com a ausência da família em sua carreira esportiva.

Ela soube da prova que lhe daria o índice para o Japão poucas horas antes. Era manhã e ela precisaria se apresentar às 14h no Estádio Caio Martins, em Niterói. Sobre este aviso tão em cima da hora ela diria anos mais tarde: "Tenho certeza que fizeram isso porque não queriam levar nenhuma das duas" (ela e a outra competidora, Márcia Cipriano). A mãe de Aída finalmente permitiu desde que antes carregasse água, lavasse a roupa e cozinhasse. O seu baile de Cinderela era a competição que carimbaria o passaporte para os Jogos e ela não perderia por nada. Às 14 horas estava lá, conseguiu a marca necessária e não tinham como não levá-la.

A atleta Aida dos Santos, que competiu nos Jogos Olímpicos de Tóquio em 1964 - Reprodução - Reprodução
A atleta Aida dos Santos, que competiu nos Jogos Olímpicos de Tóquio em 1964
Imagem: Reprodução

A seleção brasileira não lhe deu absolutamente nada. Nem treinador, nem intérprete, nem sapatilhas, nem uniformes para competir ou desfilar... Nada. Na cerimônia de abertura, a única mulher na delegação do Brasil usou a roupa de uma competição dois ano antes e que se parecida com o uniforme dos demais. Ela estava por sua conta e risco na Vila Olímpica e precisava competir.

Aída treinou com o uniforme do seu clube, o Botafogo; era única atleta sem técnico; quase perde as eliminatórias por não identificar ao certo as instruções de como proceder e ainda torceu o pé na fase preliminar, mas mesmo assim conseguiu ir passando de fase e conquistou um incrível quarto lugar.

"Todos diziam que eu não ia conseguir, mas o que eles não sabiam é que esse comentário me engrandece. Conquistei tudo sozinha e na volta tinha um carro do corpo de bombeiros me esperando. Na hora que eu precisei ninguém me ajudou, então dispensei a festa".

A vida não ficou mais fácil por ter conquistado algo surpreendente e inédito para o seu país. Para se manter competitiva fez faxina, lavou, passou e engomou. Formou-se em Educação Física, Pedagogia, Geografia e lecionou. Aída foi aos Jogos do México de 1968, mas deu uma entrevista contando todos os detalhes das dificuldades que passou e a ditadura militar a cortou dos Jogos de Munique, em 1972.

O reconhecimento veio muitas décadas depois, em 2006, com o troféu Adhemar Ferreira da Silva, oferecido pelo Comitê Olímpico Brasileiro. Em 2009 o Comitê Olímpico Internacional deu a ela o Diploma Mundial Mulher e Esporte. Foram necessários mais de 40 anos para que o país e o mundo se curvassem definitivamente à impressionante história de vida de Aída dos Santos. Esta demora não fala sobre ela, mas diz muito sobre nós.