A favela tem potência, vida e talentos sem conta para o esporte nacional
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Trabalhando com esporte ao longo de mais de duas décadas, ouvi demais a afirmativa de que talento não escolhe lugar ou hora para nascer. No entanto, vivendo no Brasil, ouso complementar dizendo que é verdade, mas o lugar e a hora escolhem se o talento irá ou não se desenvolver. Deveríamos hoje estar ligados na abertura dos Jogos Olímpicos de Tóquio. A pandemia adiou este momento, mas não afastou o fato de que seguimos desprezando o enorme potencial fora do que habituamos chamar de centro. A periferia é invisível também para o esporte nacional.
Parece até aquela frase famosa da carta de Caminha ao rei de Portugal sobre o Brasil: "em se plantando tudo dá". Quando o poder público ou iniciativas privadas se voltam para implantar qualquer iniciativa cultural ou esportiva em favelas e periferias, os resultados aparecem rápidos.
Não vamos romantizar a carência, a falta de estrutura, acessibilidade e a exclusão social condensados nestes territórios urbanos constantemente "glamourizados" ou "demonizados" pelo imaginário nacional, conforme a onda do momento. Bom seria se as favelas e comunidades pobres fossem, de fato, bairros com toda a atenção, infraestrutura e serviços do restante das cidades.
Era de humanidade, poder de autogestão, de gerar beleza e cérebros para o país "apesar de..." que Cartola falava quando criou "Alvorada lá no morro, que beleza / Ninguém chora, não há tristeza...", e Arlindo Cruz quando solta o vozeirão para afirmar "Favela ô, favela que me viu nascer, eu abro meu peito e canto o amor por você (...)" ou O Rappa quando desafia "(...) vá dizer pra ela que o som que eu faço vem lá da favela".
O preconceito com que uma parcela do Brasil olha para as favelas trava o desenvolvimento do país, pois lá podem estar (e com absoluta certeza estão) muitos dos talentos capazes de sanar nossos mais profundos problemas. É naquela vivência que nasce a empatia mais sincera e a força motriz capaz de mover o pesado paquiderme da mudança dos nossos trágicos índices. Esporte e cultura fazendo aí parceria certeira com a juventude.
No entanto, vamos continuar exercitando colocar de lado a ingenuidade. Esta "cegueira" do Estado para estes espaços e o incentivo a práticas esportivas e culturais é, na maioria dos casos, intencional. Para quem domina é sempre conveniente o discurso da "carência" e da ausência, pois, como diz um amigo acertadamente, "para quem não tem nada, metade é o dobro" e promessas de revitalização, modernização, etc... rendem votos. O que não conseguem controlar é que deste "nada" sempre nasce algo poderoso.
O Brasil ganhou 19 medalhas nos Jogos Olímpicos Rio 2016. Muitos destes pódios vieram de atletas originados em periferias e projetos sociais, sem contar os integrantes das seleções em todas as modalidades com semifinais e finais. A campeã olímpica e mundial Rafaela Silva saiu das peladas nos campos de terra da Cidade de Deus para os tatames do Instituto Reação comandado pelo judoca Flávio Canto e de lá para conquistar o topo do mundo esportivo.
Ygor Coelho, do morro da Chacrinha também em Jacarepaguá, foi o primeiro brasileiro nos Jogos Olímpicos a representar o país no badminton, é o 30º do ranking mundial e treina na Dinamarca. O canoísta baiano Isaías Queiroz foi o primeiro brasileiro a ganhar três medalhas numa mesma edição de Jogos Olímpicos (duas pratas e um bronze). O também baiano Robson Conceição saiu do bairro de Boa Vista de São Caetano para o primeiro ouro olímpico brasileiro no boxe, também nos Jogos de 2016.
Os nomes citados acima são apenas poucos exemplos do tesouro guardado e pouco incentivado nas comunidades brasileiras. Há quatro anos, depois de ganhar a medalha de prata na prova olímpica dos 1000m de canoagem, Isaías fez uma fala que ganha ainda mais significado no Brasil atual.
-- Essa medalha tem um significado especial por ter vindo de um projeto social, mas me dá tristeza ver que isso acabou no Brasil. Se vocês tiverem como tirar fotos dessa medalha, mostrem aos nossos políticos no Planalto para que eles parem de brigar entre si e continuem a buscar novos atletas. Os EUA são uma potência no esporte porque lá existe incentivo do governo. Tomara que o meu resultado e o da Rafaela (Silva, do judô), que viemos de setores não muito favorecidos da sociedade, possam abrir os olhos do governo para a importância desses projetos.
Não abriram, pois ainda aguardamos que as histórias de sucesso não sejam conquistas usadas de forma duvidosa pelo poder político e midiático, como mostras de uma meritocracia ilusória, mas constantes derivadas de um projeto de futuro para um país que não cansa do seu nada elogioso passado.
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