Neymar Jr. e o que não se pode ocultar
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No futuro, creio que o ano de 2020 será lembrado pelos horrores da covid-19 (com todas as suas gradações de crueldades oficiais e oficiosas) e por um novo capítulo mundial da luta antirracista. Uma etapa iniciada com a bomba deflagrada pela morte de George Floyd filmada e reproduzida para o planeta, mas que está com o seu "tic-tac" nos ouvidos do mundo há muito tempo.
Todos já sabem do ocorrido. Neymar Jr. teria sido chamado de macaco por Álvaro González, do Olympique de Marselha, e revidado com violência física. A confusão estava armada, com a briga se estendendo para as redes sociais dos dois atletas, fãs, mídia...
O astro mundial do futebol, o craque que vale milhões, o jovem que não pode mover-se sem que um holofote acenda em sua cabeça desde a adolescência é o novo episódio deste seriado trágico chamado racismo. A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie diz: "Nossa época obriga a tomar partido", e o jogador, que por anos sem conta correu deste debate, foi puxado para o centro dele, para a questão que ninguém mais (negros ou brancos) pode se dar ao luxo de fazer "vista grossa".
A história é bem complexa, não se presta a maniqueísmos e vai além do Neymar ou de quem quer que seja.
O ano de 2020 também poderia ficar conhecido como aquele em que a vida desenhou. Ou seja, construiu fábulas para que não restasse a mínima dúvida sobre as situações que afligem a humanidade, e a passagem Neymar-González tem todos os ingredientes. Um protagonista negro que por muito tempo se escondeu desta pauta, chegando a negar sua condição; um famoso branco que, após a reação inesperada do agredido (quem diria que Neymar se importa com isso, não é mesmo?), se cerca de companheiros negros para uma foto "antirracista", e pessoas pontuando a negação do jogador durante anos ao que estava ali o tempo todo.
No entanto, este acaso aponta para uma angústia maior: O fato de que o mundo está tomado por campanhas, ações, movimentos, protestos... Mas os joelhos seguem nos pescoços, tirando a respiração de muita gente, e as injúrias seguem firmes, sem recuo. As entidades esportivas, com algumas exceções, seguem sem tomar medidas rigorosas e eficazes para atacar e punir este mal. O caso Neymar vai além dele, muito além, e isto não significa esquecer ou condescender com o tanto de atitudes polêmicas do jogador ao longo da carreira, para dizer o mínimo.
Aliás, o racismo recreativo — tão bem esmiuçado por Adilson Moreira no livro de mesmo nome na coleção "Feminismos Plurais", coordenada por Djamila Ribeiro — tem no esporte uma de suas principais moradas e o no futebol um dos principais cômodos. Não tem muito tempo a intolerância com atitudes racistas no meio esportivo. Xingamentos de toda ordem dentro e fora de campo por décadas foram considerados "brincadeiras" normais ou coisas do "calor do jogo".
O piloto Lewis Hamilton, a tenista Naomi Osaka, os jogadores da NBA; no Brasil, o lutador Diogo Silva, o goleiro Aranha, o jogador Marinho, a ginasta Daiane dos Santos, o canoísta Isaquias Queiroz, o ginasta Ângelo Assumpção. Todos estes atletas negros e muitos outros em algum momento se posicionaram face às questões raciais que permeiam, como tudo na sociedade, também o esporte. A diferença é que no Brasil os únicos que possuem salários e status de super astros da indústria esportiva são os grandes nomes do futebol. São os atletas com maior potência midiática, poder de pressão, além de força para ampliação e aprofundamento de uma discussão urgente-urgentíssima.
Termino com uma referência essencial no estudo das questões raciais no Brasil: a antropóloga, filósofa e escritora Lélia Gonzalez. Ela disse num depoimento publicado em 1988: "A gente não nasce negro, a gente se torna negro. É uma conquista dura, cruel e que se desenvolve pela vida da gente afora. Aí entra a questão da identidade que você vai construindo. Essa identidade negra não é uma coisa pronta, acabada. Então, para mim, uma pessoa negra que tem consciência de sua negritude está na luta contra o racismo. As outras são mulatas, marrons, pardos etc."
A notícia está na mídia. O caso está criado. Agora é ver o que cada personagem fará a partir dele. Esperemos pelo nascimento de Neymar Jr, homem negro brasileiro. No entanto, caso ele não surja, não esqueçamos que há mais gente e instituições para serem devidamente cobradas.
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