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Eliana Alves Cruz

O show dos horrores do racismo na nova Era de Aquário

Gerson discute com Mano Menezes em Flamengo x Bahia, jogo do Brasileirão -  Jorge Rodrigues/AGIF
Gerson discute com Mano Menezes em Flamengo x Bahia, jogo do Brasileirão Imagem: Jorge Rodrigues/AGIF

22/12/2020 04h00

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"Retire esse negro!"
"Fecha o preto aí, ó!"
"Cala a boca, negro!"

Não, você não leu frases de um senhor de engenho no século 18, mas foram ditas com a mesma intenção: humilhar, desumanizar, reduzir uma pessoa a uma cor de pele. E foram todas proferidas em campos de futebol neste mês de dezembro de 2020, um ano em que o adjetivo "turbulento" não é suficiente para descrevê-lo.

Esta é a penúltima coluna do ano e vemos que, no futebol, outro árbitro regulou as disputas: A palavra. As que foram proferidas na certeza da impunidade da eterna "brincadeira", da não intencionalidade, do "calor do jogo", da "descontração" e da ofensa não mais engolida por quem é alvo do show dos horrores do racismo.

Foram muitos casos, mas nas duas últimas semanas os episódios onde as frases que abrem este texto aconteceram agitaram o mundo da bola: o acontecido com o auxiliar técnico do Istanbul Basaksehir, Pierre Webó; com o menino Luiz Eduardo Santiago e com o jogador Gerson.

Recapitulando, a partida mal tinha começado e a bola parou de rolar, pois o atacante Demba Ba, do Istanbul partiu para o quarto árbitro, o romeno Sebastien Coltescu, que teria dito uma expressão racista direcionada a Pierre Webó. Neymar e Mbappé, do PSG, fizeram coro e...fim de jogo pra todo mundo, afinal, você deve se levantar da mesa quando o racismo for servido. Dias depois, no outro lado do planeta, o menino Luiz Eduardo Bertoldo Santiago, de apenas 11 anos, desabafou num vídeo pós jogo contra o técnico do time adversário, Lázaro Caiana de Oliveira, que passou toda a partida chamando-o de "preto". Por último, Gerson, do Flamengo, não engoliu o "Cala a boca, negro!" do jogador Ramirez, do Bahia, e foi imediatamente acusado de "malandragem" pelo técnico Mano Menezes.

O garotinho Luiz Eduardo fez todas as pessoas negras que sabem o que isso significa chorarem com o seu choro. Aquela criança de olhar sofrido, constrangida e humilhada passava pelo que cada um e cada uma de nós passou um dia. Aquela "lágrima clara sobre a pele escura" é ancestral, mas, como nada é suficientemente ruim que não possa piorar, o técnico Lázaro apontou a criança como mentirosa, o clube escreveu uma nota com a palavra racista "denegrir" e ainda escrita errada.

A ladeira do absurdo foi descendo nas matérias saídas na mídia, até que chegou a vez do ex técnico do Flamengo, Jorge Jesus, decidir dar uma opinião sobre o caso Pierro Ebó, dizendo que "hoje está muito na moda isso de racismo" e completou de forma magistralmente absurda: "Hoje, qualquer coisa que se possa dizer contra um negro é sempre sinal de racismo. Se dizer o mesmo contra um branco, já não é racismo". Não teve pudores em deixar exposta sua desconexão com o tempo presente, o seu total desconhecimento de que racismo é um sistema de poder, logo, racismo reverso não existe. Alguém que nunca tenha aberto um livro de história na vida, até poderia imaginar que não foram os antepassados de Jorge os que inventaram tudo isso.

Já o "Cala a boca, negro!" é uma pérola do colonialismo mais arraigado, que produziu instrumentos de tortura abomináveis para forçar isso na prática. Uma expressão fortíssima, mas que está muito naturalizada nas Américas, pois o silenciamento e todas as suas vertentes foram as armas mais poderosas para que cheguemos aqui, em pleno século 21, tendo que escrever sobre do óbvio, no momento em que os astrólogos dizem que começa a famosa "Era de Aquário". Sim, segundo dizem alguns, começa agora um tempo melhor, quando "a Lua está na sétima casa e Júpiter se alinha com Marte", como diz a famosa música dos anos 70, famosa no musical "Hair".

Acreditando ou não nos astros, a hora é essa de promover uma mudança radical nos costumes e estancar para sempre a segregação, pois o comportamento racista tolerado por anos sem conta nas disputas dos grandes, teve um efeito em cascata que chegou lá em baixo, nas lágrimas do menino Luiz Eduardo.

A palavra "negro" ou "preto" paralisou e impactou partidas em 2020 tanto quanto as faltas, os pênaltis e os impedimentos. Estas palavras apropriadas pelos movimentos anti-racistas como motivo de orgulho e afirmação de identidade, ainda são utilizadas por uma multidão em sentido oposto, ou seja, como algo pejorativo, como pedradas para quem não sabe o tanto que, apesar dos pesares, o planeta tem caminhado.

Repetindo a canção de Chico Buarque, "apesar de você amanhã há de ser um novo dia" e, do lodo sempre aparece uma planta qualquer, uma flor de lótus. Nossas flores são o tardio, mas muito bem vindo, posicionamento contrário das estrelas esportivas; os clubes finalmente se mexendo (ainda que não na velocidade que gostaríamos), o menino Luiz Eduardo recebendo convites para testes em grandes agremiações e o apoio de seus ídolos; a sociedade se mobilizando, não engolindo mais, empurrando as botas que querem estrangular pescoços. Uma legião que repete como a voz poderosa de Fabiana Cozza na música "Principia", do rapper Emicida: "Se a Terra não for livre eu também não sou".

Está longe ainda, mas falta menos do que faltava. Venha, nova era planetária!