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Eliana Alves Cruz

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Pioneiras não vistas pela multidão: Irenice Maria Rodrigues

Equipe brasileira conquista ouro no revezamento 4x100m feminino do atletismo do Pan - Alexandre Loureiro/COB
Equipe brasileira conquista ouro no revezamento 4x100m feminino do atletismo do Pan Imagem: Alexandre Loureiro/COB

09/03/2021 04h00

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"Pai, afasta de mim esse cálice" (Chico Buarque e Gilberto Gil)

Irenice Maria Rodrigues não esteve em nenhuma galeria de celebridades, em nenhum "Hall da fama", em nenhuma parede de laureados de algum clube, em nenhum livro de notáveis do esporte nacional, em nenhuma biografia que um dia seria peça de teatro, longa-metragem ou seriado. Não se via Irenice. Assim como não eram vistos os 20 mil torturados os 434 brasileiros oficialmente reconhecidos como desaparecidos políticos, enquanto Irenice corajosamente corria, vivia e ousava falar: na ditadura militar brasileira (1964-1985).

Além de recordista nacional, sul-americana e atleta olímpica, a moça negra, muito resistente e com marcas extraordinárias ainda para os dias atuais, tem outro mérito: ter incomodado os ditadores. A jovem pobre nascida em Itabirito/MG estava muito longe da imagem que os governantes gostariam para símbolo do "país do futuro". Crítica feroz do Comitê Olímpico Brasileiro, ela foi uma das principais articuladoras de uma greve de atletas no começo do período mais duro da repressão, em 1967, quando o COB era controlado pelo Conselho Nacional de Desportos (CND), que por sua vez era todo ocupado por militares.

Mas qual a "bronca" de Irenice? O que a fazia tão rebelde? Na verdade, estas perguntas deveriam ser feitas no plural, pois eram várias as motivações desta atleta que primeiro saltava e depois passou a correr 400m e 800m, esta última uma distância proibida para mulheres, pois a consideravam "por demais desgastante para o corpo feminino". Seu técnico, Genário Simões, vendo que no aquecimento ela dava mais que o dobro de voltas que as outras atletas, sugeriu a prova de fundo e ela topou. Quiseram impedi-la de disputar os Jogos Pan-Americanos de Winipeg, no Canadá, em 1967, mas mesmo assim ela foi e se destacou.

Vestida com seus shorts curtos, com cabelos pintados de louro que hoje poderia ser chamado perfeitamente de "louro pivete" onde morava, no bairro de São Cristóvão, Irenice chocava uma sociedade ainda presa demais aos padrões de beleza tradicionais ditados por europeus colonizadores e pronta para confinar mulheres no terreno da delicadeza que não incluía provas de resistência. A personalidade forte da atleta contestadora de tudo o que considerava injusto denunciava os clubes que não cumpriam os apoios aos atletas, que discriminavam e exploravam.

Certa vez ela e outros atletas do Fluminense foram barrados numa tarde dançante por serem negros. Isto dito na portaria, atirado no rosto após perguntarem a ela de qual família era empregada. A partir dali surgiu um movimento em que os atletas se recusaram a participar das competições, fizeram manifestos e barulho suficiente para chegar nos ouvidos poderosos. Falar contra o racismo no Brasil dos anos 60 era considerado subversão. Não quiseram que ela competisse com a camisa do clube.

"Não me querem com a camisa do clube? Eu compito de camisa branca."

Irenice articulou um movimento grevista com atletas de Minas, São Paulo e Rio denunciando as más condições dos atletas brasileiros. No entanto, a greve não prosperou e ela voltou a correr, a bater recordes e a tentar despertar consciências adormecidas pelo medo ditatorial.
Chegou o emblemático ano de 1968, ano Olímpico. O mundo pegava fogo com as lutas pelos direitos civis, o feminismo, a luta contra a guerra do Vietnã. Martin Luther King perderia a vida em abril, Malcom X estava morto há apenas dois anos. Tempos de fogo e Irenice era pólvora. O COB não a queria. O status quo não a queria.

Uma briga com uma colega da delegação, Maria Cipriano, que denunciou Nelson Prudêncio e Irenice por burlarem a segurança para treinar fora do horário na pista fechada, foi o suficiente para ser encarada como indisciplina tão grave a ponto de expulsá-la da delegação. Expulsar uma atleta com reais chances de chegar a uma final olímpica. Ela voltou sozinha e o Brasil demorou décadas para ter outra atleta com tempos sequer próximos aos dela.

Na ocasião, o dirigente Hélio Babo declarou: "Foi um desastre para o esporte nacional. Por confiar no ser humano, não barrei a participação dela antes, quando deu entrevistas criticando o planejamento para as Olimpíadas. Faltou humildade e espírito olímpico a Irenice".

A jovem de Itabirito, no entanto, continua a competir. Sua carreira só seria interrompida definitivamente em 1971, quando novamente Hélio Babo a pune, pois insatisfeita e infeliz com todo o sistema, na hora da largada seu protesto foi caminhar ao invés de correr. A partir deste ponto a atleta foi perseguida implacavelmente. Não conseguiu cursar Educação Física, não davam seus resultados, ocultaram suas fotos, informações e participações. Ela faleceu em 1981 e seu túmulo nem nome possuía. Aconteceu com ela o mesmo que ocorreu com quase toda a história da população negra brasileira: apagamento.

Irenice não estava, mas agora está. Recentemente pesquisadoras Katia Rubio (USP) e Cláudia Farias (Unesa), resgataram sua história. Ela foi tema do documentário "Procura-se Irenice", de 2016, realizado por: Marco Escrivão e Thiago B. Mendonça, com produção de Laura Calazans. A mineira também é nome de maratonas e alguns eventos. Sua história está em algumas matéria e trabalhos.

Irenice esteve, está e estará. Sua voz finalmente é acolhida por ouvidos atentos, com o respeito que ela merece. Entendendo a ironia de Chico Buarque e Gilberto Gil na música composta no auge da ditadura (1973) e que abre este texto, "Pai, afaste de mim esse cale-se".

Irenice Maria Rodrigues, presente!