Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Eliana Alves Cruz: Réquiem para um atleta das águas
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O surfista alagoano Wellington Reis, de apenas 20 anos, morreu assassinado em Maceió. Sua passagem trágica, reportada, porém pouco repercutida, nos conta muitas coisas não sobre ele, mas sobre nós. Seu falecimento nos atualiza sobre a distopia em que estamos todas e todos mergulhados.
Em que momento nos perdemos tanto, a ponto de ter um talento esportivo em situação de rua e em vulnerabilidade tão profunda? Bem... se conseguirmos olhar o drama em seus olhos, sem fuga, talvez não tenha sido em vão. O texto hoje vai em forma de carta para ele e reflexão para nós.
Moço que caminhava sobre águas,
Não te conhecia pessoalmente. Sobre você talvez tenha visto alguma notícia perdida no tempo, pois acompanho esportes com certa regularidade. Vi que você foi campeão brasileiro de surfe em 2015. Olha, passaram-se apenas seis anos, mas a quantidade de coisas ruins que aconteceram no mundo e em especial no Brasil foi tão grande, que temos sensação de que o ano do teu título nacional está perdido em alguma década longínqua.
Neste sábado (28), completa-se uma semana que lhe tiraram a vida. No momento em que escrevo este texto, pode ser que a polícia já saiba algo sobre as motivações e situações envolvendo tanta violência, mas... sinceramente? Pouco importa. Nada justifica. Nada pode explicar ou abonar o fato de uma nação permitir que mais de 220 mil pessoas (o número exato é 221.869, de acordo com uma pesquisa feita em 2020 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada -IPEA) não tenham um teto sobre suas cabeças e uma vida digna de seres humanos.
Nada ou ninguém nesta nação que costuma banalizar, ridiculariza, minimizar e, principalmente, invisibilizar sofrimentos e crueldades tem o direito de julgá-lo. O que sei que você era um talento! Talvez pudesse estar desfilando com o uniforme da delegação brasileira nos Jogos de Paris 2024 ou talvez dropando ondas, ou seja, descendo sobre elas nos mares pelo mundo afora em circuitos famosos e que pagam boas premiações.
A tragédia mais brasileira de todas, que é o abandono da população, em especial da juventude, a própria sorte torna a sua trajetória uma fábula macabra, uma metáfora terrível para a desesperança.
Acontece, Wellington, que a sua morte tão ilustrativa da falta de incentivo ao esporte, do preconceito com atletas fora do "Sul Maravilha", do desperdício de talentos grandiosos, não pode ter sido em vão. Estamos por aqui ainda e se encararmos com coragem esse abismo em que você mergulhou, ele vai nos encarar de volta sim, mas este não será para nos puxar para dentro. Este será o momento em que finalmente vamos começar a vencê-lo.
Poderia ficar aqui falando sobre oportunidades desiguais, sobre todo o cansativo discurso sobre meritocracia que cerca o esporte e a vida brasileira amante de um herói e de uma heroína, sobre seus companheiros de esporte ricos, pobres... Não vou. É tudo tão óbvio, você não concorda?
Te conto que, por enquanto, a turma se diverte da forma mais inconsequente possível com o fim do relacionamento de um colega seu e com seus dramas conjugais e familiares tão difíceis que, aparentemente, o fizeram dar um tempo do esporte que tanto ama para se recuperar.
É... ainda não podemos olhar o abismo sem que ele nos trague, mas um dia acontecerá. Confia e siga em paz.
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