Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Violência contra a mulher e racismo: Futebol, alegria do povo?
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"Brasil está vazio na tarde de domingo, né? Olha o sambão, aqui é o país do futebol!"
Desde que Milton Nascimento e Fernando Brant compuseram "Aqui é o país do futebol", em 1970, o Brasil mudou radicalmente...e ao mesmo tempo não mudou nada. O esporte que aportou nestas bandas no final do século 19 e início do século 20 continua movendo paixões, mas infelizmente não apenas pela bola que rola em um campo com "onze de cá e onze de lá", como no chorinho "Um a zero", de Pixinguinha.
Pesquisa recente atesta que mulheres apanham mais em dias de jogos na própria cidade. Para além dos dados estatísticos, não passa duas semanas sem que a imprensa noticie um caso ruidoso envolvendo ofensas racistas entre torcidas e/ou jogadores. O futebol, este esporte tão definidor do Brasil a ponto de ser identificado como marca nacional no mundo inteiro, tem se mostrado também balizador de todas as nossas profundas dores.
A pesquisa é do Instituto Avon, que desde 2013 promove campanhas para combater o câncer de mama e a violência contra a mulher. A nova e péssima notícia é que em dias em que um dos times da cidade joga, o número de registros de boletins de ocorrência de ameaça contra mulheres aumenta em 23,7%, o de lesões corporais aumenta 20,8% e em dias em que a partida desse time é na própria cidade, este último sobe para 25,9%. Tudo isso significa? Significa.
A culpa de tanta violência, obviamente que não é do esporte em si, mas do que fizeram dele, ou seja, um ambiente altamente tóxico e brutal, que condensa e deixa fluir tudo o que de mais venenoso certa masculinidade frágil produz, sem contar o racismo encruado nas sociedades. Sobre este último tema, um enorme bocejo. A preguiça que ele traz só não é maior que o crime e a injustiça que representa.
No último final de semana mais um jogador (Rafael Ramos, do Corinthians) foi acusado de ofensa racista ao chamar de macaco seu oponente na partida (o volante Edenilson, do Internacional). O caso, como tantos outros, ganhou a mídia e os desmentidos e as notas oficiais e as acusações e as investigações com leitura labial e a queixa na polícia e a fiança de valor baixo e, e, e... Um looping exaustivo, frustrante e esvaziado de sentido para quem vive este drama cotidianamente, ao longo de toda a vida.
Há poucas semanas lancei um livro (Solitária, pela Companhia das Letras), que traz trabalhadoras do lar no protagonismo. O racismo, obviamente, está lá. Em post de um dos jornais que fez matérias sobre o livro, alguém comentou: "o mundo está muito chato". Achei positivo este comentário, pois se estas coisas estão incomodando quem assistia comendo pipoca ao jogo do time de coração, sem se importar com o mundo à sua volta, algo está se movendo.
A única discordância é quanto ao verbo, pois o mundo não está chato. Ele sempre foi. Sempre foi chatíssimo e quase insuportável para mulheres que sofrem violência e para pessoas negras que tem sua humanidade constantemente retirada ao mínimo sinal de desavença. Neste cenário, democratizar a "chatice" já é um ganho. Gol de placa.
A música de Milton e Fernando, que ganhou interpretações na voz de Wilson Simonal, Elis Regina e outros, é de uma felicidade ímpar. Coisa de gênios. Ela ao mesmo tempo que fala do amor que o país tem pelo futebol e de quanto este esporte alivia suas dores, também deixa nas entrelinhas os efeitos alienantes e ilusórios que ele produz.
"Noventa minutos / De emoção e alegria / Esquece a casa e o trabalho/ A vida fica lá fora/ E tudo fica lá fora / Inferno fica lá fora (...)"
Será?
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