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Fábio Seixas

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

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Pilotos da F-1 seguem o safety car durante o GP da Bélgica, prova mais curta da história da F-1  - CHRISTIAN HARTMANN/REUTERS
Pilotos da F-1 seguem o safety car durante o GP da Bélgica, prova mais curta da história da F-1 Imagem: CHRISTIAN HARTMANN/REUTERS

Colunista do UOL

30/08/2021 08h21

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Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa;

Uma coisa é a inegociável premissa de que a segurança vem em primeiro lugar. Não dava para correr em Spa-Francorchamps ontem, infelizmente. Você queria ver uma corrida, eu queria ver uma corrida, os torcedores molhados em Spa queriam mais do que nós ver uma corrida. Mas não havia como. Autorizar um GP naquelas condições seria correr o risco de manchar as mãos de sangue. Ainda estão muito vivas na F-1 as memórias da morte de Anthoine Hubert, dois anos atrás. Boa parte dos jovens do grid correu com ele. Na quinta-feira, alguns levaram flores à Eau Rouge. Na sexta, um acidente múltiplo na classificação da W Series fez todos temerem pelo pior. No sábado, Norris bateu muito forte no mesmo ponto... Não dava para correr ontem. Paciência;

Outra coisa foi a maneira como a FIA lidou com o episódio. Durante as horas de interrupção, consultei algumas vezes o Regulamento Esportivo da F-1. Não existe capítulo, artigo ou cláusula que trate sobre a possibilidade de cancelamento de uma corrida. E isso, mais do que uma falha, é revelador do espírito da categoria. Cancelar um GP nunca foi uma opção. A alternativa que o regulamento oferece é a que foi usada: dar pelo menos duas voltas atrás do safety car e então acionar a bandeira vermelha. Qual foi o grande erro ontem? Não ter dado mais voltas atrás do safety car. Isso, de cara, resolveria um problema: aliviaria o clima de teatrinho que ficou no ar. De quebra, abriria a chance para duas ou três voltas de corrida de verdade se a situação melhorasse em algum momento. Havia luz natural e tempo para isso;

Transferir o GP para segunda-feira, como a Indy já fez em São Paulo, poderia ser uma saída? Em tese, sim. Mas aí entram duas questões. A meteorologia previa novamente um dia miserável em Spa. E isso mexeria com contratos e grades de programação de TVs do mundo todo. A FIA e seu parceiro comercial nunca quiseram mexer nesse vespeiro;

Ocorre que o parceiro comercial da FIA mudou. Por décadas foi Ecclestone, inglês genial nos negócios, mas com métodos que estancaram nos anos 80. Agora é a Liberty Media. Citei ali em cima o "espírito" do regulamento da F-1, de nem sequer cogitar o cancelamento de uma corrida. Pois o "espírito" de gestão americana vai exatamente na direção oposta: o fã precisa estar no centro das decisões. Escrevi meses atrás que mais cedo ou mais tarde esse choque de visões vai tornar as relações mais tensas entre FIA e Liberty. Ontem certamente os americanos não gostaram do que viram;

"Engenheiro de obra pronta" é uma expressão que aprendi anos atrás e que define um personagem clássico do nosso dia a dia. É aquela figura que só aparece quando o trabalho está terminado, mas não se furta a metralhar opiniões. Lança frases como "deveriam ter feito isso" e "ficaria muito melhor se tivessem feito aquilo". Mas onde estavam durante a obra?

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Em postagem no Instagram, Hamilton diz que GP da Bélgica foi uma farsa
Imagem: Reprodução/Instagram

Onde estava Hamilton naquelas três horas? O cara é heptacampeão mundial, um dos maiores pilotos de todos os tempos. Tem lugar de fala, tem estofo e história para vir à frente dos boxes e se posicionar. Mais: sua opinião provavelmente pesaria, seria considerada pelos comissários. Debaixo de toda aquela chuva, Hamilton poderia ter se manifestado sobre a falta de condições, clamado pelo cancelamento da corrida e o pedido o reembolso dos ingressos para os torcedores. Mas não. Preferiu ficar trancado nos boxes e só falar depois. Não foi a postura de um líder de classe. Foi a postura de um engenheiro de obra pronta;

Mas ele não está sozinho. Os chefes de equipe estão todos na mesma lista. Vários deles deram entrevistas naquele intervalo e adotaram discursos vazios, na linha do "vamos esperar para ver". Decisão tomada, todos subiram nas tamancas e se insurgiram contra a FIA, certamente seguindo orientação da área de relações públicas de suas montadoras. Saudade dos garagistas, dos donos de equipes com personalidade forte que falavam na lata;

"Grande corrida! Eu estava quase te alcançando!". Assim Norris cumprimentou Verstappen, no cercadinho em que os pilotos concedem entrevistas após as corridas. O inglês, além de grande piloto, é um cara divertido. E se não fosse o acidente no Q3, poderia ter herdado a vitória ontem. Uma hora ela vem...

E os sorrisos de Russell no pódio? E a festa que ele fez? Não sei se isso melhora ou piora as chances de o inglês estar na Mercedes no ano que vem, mas foi legal de ver;

Verstappen ainda não conseguiu recuperar a liderança do campeonato, mas sai de Spa com pelo menos duas boas notícias. A primeira: seu motor, que já está no fim da linha, ganhou uma sobrevida. A segunda: a próxima é em casa. Zandvoort não terá público total, por causa da pandemia, mas não é difícil imaginar a cor predominante nas arquibancadas. Virar o campeonato diante de sua torcida seria especial. E é bem possível que aconteça.