Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
De intragável a descontraído: a metamorfose de Alonso
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Entre os anos 70, 80 e 90, apenas um jornalista espanhol acompanhava a F-1 regularmente: José María Rúbio, repórter e fotógrafo de mão cheia, um cara simpático e generoso, grande colega de viagens mundo afora.
Só ele. E havia motivos para isso. Embora recebesse a F-1 desde 1951, a Espanha não se derretia de amores pela categoria. Até o início do século, o piloto espanhol com mais sucesso havia sido Alfonso de Portago, um aristocrata nascido em Londres e que disputou cinco GPs pela Ferrari nos anos 50, conquistando um segundo lugar no GP da Inglaterra de 1956.
Mais: o motociclismo sempre imperou por lá. Os ídolos que faltavam na F-1 abundavam nas duas rodas, nomes como Ángel Nieto, Sito Pons e Àlex Crivillé,
Aí chegou Alonso. E a "Alonsomania". E aí duas histórias vêm à mente.
A primeira, de 2003. Flavio Gomes e eu acordamos no domingo em Barcelona, tomamos o café da manhã tranquilamente e rumamos para Montmeló, a 30 km dali, como fazíamos sempre.
Mas assim que chegamos à estrada, entramos em pânico. Tudo parado. Um congestionamento monstruoso, algo nunca visto naquela corrida, sempre tão pacata. Os carros levavam bandeiras da Renault, da Espanha, de Alonso...
Torcedores desciam de vans e cantavam na pista. Logo ficou claro: não chegaríamos em tempo para a abertura da transmissão na Rádio Bandeirantes, 40 minutos antes da largada
Ao volante, o indigitado colega cometeu as maiores barbaridades já vistas numa rodovia ibérica. Eu me pendurei pela janela, exibindo as credenciais de imprensa, como que tentando justificar aquelas manobras, digamos, questionáveis. Só sei que quando chegamos à sala de imprensa e ligamos os equipamentos, a trilha de abertura da transmissão já estava tocando.
A segunda história é mais triste e tem a ver com o Rúbio. Foi em Hockenheim, imagino que em 2005. Ao fim de um dia de trabalho, Flavio e eu entramos na van que levava os jornalistas da sala de imprensa para o estacionamento. Rúbio estava na nossa frente, com uma expressão de desolação, aquela cara de quem havia chorado pouco antes.
"O que houve?"
"O Fernando."
E então ele nos contou tudo o que havia feito por Alonso nos tempos de dureza de F-3000. Era Rúbio, o único compatriota daquele paddock sem espanhóis, que buscava o garoto nos aeroportos, dava carona para os autódromos, ajudava a procurar hotéis baratos...
"E hoje, numa entrevista coletiva, eu fiz uma pergunta, ele não gostou e me deu uma patada."
Sim, Alonso tornou-se um sujeito intragável naqueles anos de sucesso.
Era um piloto excepcional, capaz de vencer Schumacher e fazer o alemão pela primeira vez falar em aposentadoria. Mas era arrogante, agressivo, sentia-se o maior de todos os tempos. Tornou-se imagem e semelhança de seu empresário e chefe de equipe, Briatore.
Mas o tempo passa. E nada como o tempo para amadurecer e mudar as pessoas.
Depois da Renault, Alonso quebrou a cara na disputa com Hamilton na McLaren, viveu um brilho fugaz na Ferrari e, de volta à McLaren, comeu o pão que o diabo amassou.
Deixou a F-1, correu Le Mans, Daytona, 500 Milhas, experimentou até o Dacar.
Retornou neste ano. E é um novo cara.
O Alonso da Alpine é um sujeito descontraído. Os tempos de garoto prodígio ficaram para trás. Aos 40 anos e uma tatuagem de samurai nas costas, não carrega mais aquele peso de precisar provar ser bom a cada fim de semana.
É bicampeão da F-1. Venceu duas vezes Le Mans e uma vez Daytona. Correu duas vezes em Indianápolis. Precisa de mais alguma coisa?
Talvez só precise se divertir. E se mostrar útil. É o que vem fazendo.
Após 15 GPs, é o décimo colocado no campeonato, com 58 pontos _7 a mais que Ocon, o companheiro. Marcou pontos em 11 corridas. Na Rússia, arrancou um excepcional sexto lugar no grid, posição que repetiu naquele final caótico.
Suas entrevistas já não carregam mais aquela empáfia de 15 anos atrás. Pelo contrário. Alonso apertou a "tecla F" e agora é o sincerão do paddock. Fala o que vem na telha, o que realmente está sentindo, algo raro na categoria. Talvez, inclusive, tenha se deixado contagiar pelo estilo da molecada atual, Norris, Russell e cia.
Rúbio, até onde sei, continua acompanhando a F-1. Que bom. O Alonso que ele fotografa hoje pode não conquistar títulos e lutar por vitórias, mas certamente é um personagem muito melhor.
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