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Fábio Seixas

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Pedido de desculpas com dois "mas" não é pedido de desculpas

Nelson Piquet, ex-piloto da Formula 1 e tricampeão da categoria, divulgou pedido de desculpa nesta quarta-feira - Alastair Staley/Getty
Nelson Piquet, ex-piloto da Formula 1 e tricampeão da categoria, divulgou pedido de desculpa nesta quarta-feira Imagem: Alastair Staley/Getty

Colunista do UOL

29/06/2022 13h02

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Pedido de desculpas com dois "mas" não é pedido de desculpas. Esclarecimento apoiado em falácia não é esclarecimento. A nota de Nelson Piquet, emitida nesta quarta-feira, é mais uma reação às críticas da F1, ao receio de se tornar um pária, do que sinal de arrependimento.

Talvez não funcione. Executivos da categoria discutem o banimento vitalício do brasileiro do paddock. O uso da expressão "neguinho" pelo tricampeão, em uma entrevista gravada em 2021 e que veio à tona agora, vai diretamente contra as últimas campanhas da categoria e desafia uma promessa recente de seu CEO, Stefano Domenicali: menos discurso e mais ação.

A nota foi redigida apenas em inglês e distribuída à imprensa internacional.

A tradução em português está abaixo:

"O que eu disse foi mal pensado, e eu não vou me defender por isso, mas eu vou deixar claro que o termo é um daqueles largamente e historicamente usados de forma coloquial no português brasileiro como sinônimo de 'cara' ou 'pessoa' e nunca com intenção de ofender. Eu nunca usaria a palavra que estou sendo acusado em algumas traduções.

Condeno veementemente qualquer sugestão de que a palavra tenha sido usada por mim com o objetivo de menosprezar um piloto por causa de sua cor de pele.

Eu me desculpo com todos que foram afetados, incluindo Lewis, que é um grande piloto, mas a tradução em algumas mídias e que circula nas redes sociais não é correta. Discriminação não tem espaço na F1 ou na sociedade e estou feliz em deixar claros meus pensamentos."

É emblemático que Piquet, nascido no Rio de Janeiro, morador de Brasília e que fala português fluentemente, só tenha se pronunciado em inglês, para a mídia internacional. Fica mais fácil usar o argumento do erro de tradução. Se colar, colou. Na sua língua nativa, é evidente a distinção entre "neguinho", usado historicamente e inadequadamente como sinônimo de "cara", e "o neguinho", com artigo masculino definido, como foi o caso na tal entrevista.

Uma luz à discussão veio de Wilson Gomes, pesquisador, escritor e professor da Universidade Federal da Bahia. "'Neguinho' não é um termo racista. Racista foi o emprego que lhe deu Nelson Piquet. Semântica é uma coisa, pragmática é outra. Jornalistas têm semiótica no currículo, então deveriam ter aprendido isso. Obrigado pela distinção", escreveu no Twitter.

Piquet apostou justamente na falta de distinção, no "lost in translation". Talvez convença alguém. Provavelmente não será suficiente para dobrar quem hoje manda na F1, um pessoal bem diferente de Ecclestone, Mosley e companhia, a turma com quem conviveu por décadas.

Desde que assumiu o lado comercial do esporte, em 2016, o grupo americano Liberty Media tem se empenhado em campanhas pela diversidade, contra a desigualdade e o preconceito. Por quase dois anos, o slogan "We Race as One", algo como "Corremos Como Um Só", estampou as iniciativas. Com Lewis Hamilton à frente, pilotos gravaram mensagens antirracistas e vários deles reforçaram o empenho ajoelhando-se em grids de largada.

O heptacampeão ainda liderou uma iniciativa inédita, o "Relatório Hamilton", mapeando a presença de minorias no paddock e cobrando ações efetivas dos dirigentes. Deu resultado: Chase Carey, antecessor de Domenicali como CEO da Fórmula 1, doou US$ 1 milhão em bolsas escolares para estudantes de engenharia de grupo pouco representados nas equipes.

Em fevereiro, há apenas quatro meses, Domenicali prometeu agir. Ao anunciar o fim da campanha "We Race as One", justificou-se assim: "Os gestos foram importantes porque mostraram que precisamos respeitar a todos. Mas agora é hora de seguir em frente e agir. Vamos sair dos gestos para a ação e focar na diversidade de nossa comunidade".

Piquet, como campeão do mundo, tem credencial vitalícia para entrar em qualquer circuito que quiser, quando quiser. Mas imaginem o desconforto da F1, das equipes e de todas as marcas envolvidas se ele resolver aparecer. Um dirigente abriria as portas para o tricampeão tomar café no seu motorhome, em frente ao logotipo de um patrocinador?

Duvido. É mais fácil pra todo mundo não correr este risco. É mais lógico para a F1 banir o tricampeão. É o que acho que vai acontecer.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL