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Flavio Gomes

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

15 anos depois, o abraço que eu queria ver

Alonso e Hamilton, juntos: minha resposta chegou, ainda que de forma tardia - Reprodução/Twitter
Alonso e Hamilton, juntos: minha resposta chegou, ainda que de forma tardia Imagem: Reprodução/Twitter

Colunista do UOL

05/09/2022 04h00

Esta é parte da newsletter do Flavio Gomes, que foi enviada ontem (4). Na newsletter completa, apenas para assinantes, o colunista destaca a vitória de Max Verstappen na Holanda e o 50º aniversário do primeiro título de Emerson Fittipaldi. E, como dica da semana, traz a fantástica F-1 de Lego. Quer receber antes o pacote completo, com a coluna principal e mais informações, no seu e-mail, semana que vem? Clique aqui.

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Perdoem o tom autorreferente. Detesto isso. Mas às vezes a gente recorre ao estilo. Vamos lá, correndo o altíssimo risco de parecer pretensioso.

Outubro de 2007, GP do Brasil, Interlagos. Eu tinha parado de viajar para todas as corridas de F-1, o que fizera desde 1988, dois anos antes. Mudança de rumo, um novo trabalho em TV, essas coisas que vão acontecendo na vida. Achava que já tinha feito o suficiente. Meu Mundial particular fora disputado por Senna, Prost, Piquet, Mansell, Schumacher. E alguns coadjuvantes que em tempos distintos levariam estatuetas como protagonistas, como Hill, Villeneuve, Hakkinen. Já deu.

Então, a presença física em GPs foi trocada por uma errática atuação como piloto de verdade com carros idem, ainda que antiquados e, obviamente, bem mais lentos.

A rotina mudou. De 16, 18, 20 corridas de F-1 por ano, viagens intermináveis, hotéis e aeroportos, apenas uma, em Interlagos. Com estilo, metendo uma credencial no para-brisa de um Lada ou um Trabant — para chocar a sociedade. E foi assim que entrei na sala de imprensa do histórico templo paulistano em 2007 para mais uma das centenas das entrevistas coletivas para o que se chamava de "imprensa escrita", dedicada aos jornais e revistas que ainda tinham, naqueles tempos, alguma importância.

Aqui vale um parêntese. A FIA demorou muito para reconhecer como veículos de imprensa credenciáveis aqueles nascidos na internet. Jornais e revistas ainda tinham prioridade para receber um passe que desse acesso ao mundo fechado e hermético da F-1. Eram mais respeitáveis. Havia uma zona cinzenta para definir o que era imprensa de verdade. Fechados os parênteses.

Nunca fui de fazer perguntas em coletivas para a imprensa escrita. O inglês nesses eventos é a língua mater e até hoje tenho um pouco de vergonha de falar inglês em público, mais ainda diante de nativos. Como os colegas de outros países perguntavam tudo que importava, raramente tomava o microfone para fazer algum questionamento mais específico. Mas em 2007, eu queria, sim, saber algo de dois rapazes.

Eles eram Lewis Hamilton, 22 anos, e Fernando Alonso, 26. Dois moços que, àquela altura, já se tratavam como inimigos mortais. E era o primeiro ano de ambos como companheiros de equipe, na McLaren. Resolvi, naquela coletiva de quinta ou sexta-feira, partir para uma pauta filosófica. Minha tese: dois jovens talentosos, com gostos em comum, um com dois títulos no bolso, outro futuro campeão; poderiam ser os melhores amigos do mundo. Em vez disso, sucumbiam a uma rivalidade tóxica, a uma convivência próxima do insuportável. Perguntei, depois de longa digressão: vocês, tão meninos, não estão desperdiçando suas vidas?

A pergunta, naquele ambiente, era evidentemente idiota. Riram de mim, ambos. "Não entendi direito o que você perguntou", disse Alonso. "Se eu achasse que estava perdendo meu tempo, não estaria aqui", emendou Hamilton. Felipe Massa, o terceiro elemento naquela conferência de imprensa, tentou salvar minha pele: "É difícil entender os brasileiros...". Era como se dissesse: meus conterrâneos se preocupam com umas coisas meio esquisitas... O apresentador da coletiva, meu querido amigo Bob Costanduros, veio em meu socorro: "Acho que ele quis dizer que vocês, tão jovens, em começo de carreira, talvez estejam desperdiçando sua juventude nesta batalha, neste conflito...".

Então, Alonso o interrompeu. "Não, não acho. Acho que agora entendi a pergunta".

(Obrigado, Fernando, pensei; da próxima vez elaboro melhor em espanhol. Obrigado, Bob, da próxima vez peço para você perguntar e depois vamos tomar umas cervejas para falar de nossos carros antigos.)

Compreendida a questão, Alonso e Hamilton deram suas respostas superficiais e desinteressantes, derrubando minha pauta — eu esperava algo como "é verdade, talvez estejamos jogando nossa vida no lixo com essa agressividade, essa hostilidade, esse comportamento ridículo", mas é óbvio que não diriam nada disso. Ambos disseram que as coisas eram como eram, "nós somos pilotos, competitivos", "se não fôssemos pilotos estaríamos competindo em outros esportes", "é da competição que tiramos nossa energia", e assim foi, e a minha pauta caiu. Ah, os jovens, pensei... Não sabem de nada. Envelheçam! Leiam Nelson Rodrigues!

Avança a fita, chegamos em 2022. Hamilton tem 37 anos, Alonso acabou de fazer 41. Jovens adultos. O tempo passou, cada um seguiu seu caminho, um ganhou sete títulos, o outro ficou nos dois que tinha, e aí, na Bélgica, semana passada, se encontraram na pista. Os embates se tornaram raros desde aqueles tempos de McLaren. Alonso foi embora no final daquele ano, Lewis também saiu, foi para a Mercedes, virou o que virou. Mas se encontraram de novo, um num time médio, outro numa equipe vencedora num momento difícil, e uma roda bateu na outra, um carro decolou, o outro ficou na pista, e Alonso disparou, para todos ouvirem: "Idiota! Esse cara só sabe guiar quando larga na frente!". "Esse cara" era Hamilton.

Volta a fita, a 2007. Ressentimento é algo perene. Lembrar o passado faz parte da vida. Alonso, 15 anos antes, decidiu não lutar aquela guerra. O inimigo era forte: talentoso, combativo, diferente. Carregava na cor da pele séculos de opressão. Seu combustível era outro. O espanhol abaixou a cabeça e se retirou de cena.

O toque em Spa da semana passada não tem nenhuma relevância. Não será relatado, na história da F-1, como um episódio decisivo, memorável, inolvidável. Apenas um toque de rodas na primeira volta de um GP em que nenhum dos dois era protagonista.

Mas depois de encerrada a corrida, Hamilton, em suas redes sociais, publicou uma foto. Um boné com um pedaço de fita crepe onde se lia "to Fernando". Menos de uma semana depois, na prova seguinte, quinta-feira agora, se encontraram na Holanda. O boné foi entregue. Alonso pediu desculpas. "Ele é uma lenda do nosso esporte", disse, sobre Hamilton.

Amigos, enfim? Não sei. Nem acho que sejam. Mas se abraçaram. Se olharam nos olhos. Sorriram um para o outro. Nas rugas de cada um, uma longa trajetória. Quinze anos depois, talvez tenham entendido o que perguntei em Interlagos em 2007, meio sem jeito, num inglês atravessado. Mesmo que não se lembrem, claro, daquela remota coletiva em Interlagos.

A foto de quinta-feira passada respondeu a pergunta. Estou satisfeito com ela, ainda que um pouco tardia.

Não desperdicem suas vidas, crianças.

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