Topo

Flavio Gomes

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Carta a um caro amigo que morreu e nunca vai ler

Caricatura de Silvio Lancelotti, de autoria de Ziraldo - Reprodução/Ziraldo
Caricatura de Silvio Lancelotti, de autoria de Ziraldo Imagem: Reprodução/Ziraldo

Colunista do UOL

19/09/2022 04h00

Esta é parte da newsletter do Flavio Gomes, enviada ontem (18). Na newsletter completa, apenas para assinantes, o colunista comenta sobre o domínio do 'trio-de-ferro' da Fórmula 1, os 350 GPs de Fernando Alonso e a desistência da Red Bull na contratação de Colton Herta. Quer receber antes o pacote completo, com a coluna principal e mais informações, no seu e-mail, semana que vem? Clique aqui.

********

Caríssimo,

Acabo de voltar do seu velório. O que farei agora não tem nada de original ou criativo, escrever uma carta ao falecido. Você não vai ler, é sabido. Há um vasto (e, no meu caso, envergonhado) componente de vaidade nesses obituários em que a gente fala mais de nós mesmos do que de quem morreu. Olha só, ele morreu, mas eu era bem importante para ele, viu? Não se esqueçam de mim quando falarem do morto.

Por dessas coisas da vida, eu lembrava quase todos os dias de você por conta — não resmungue — de trajetos frequentes aqui por perto. Lá na avenida Ibirapuera, sempre passo pela esquina onde ficava um bingo chamado Circus. Hoje há uma loja da Renner. Nunca entrei no bingo, em nenhum bingo, mas naquela época em que eles se espalhavam pela cidade eu julgava pertinente, sempre que passava pelo Circus, alertar quem estivesse comigo no carro que aquele ali era diferente dos outros, porque o cardápio tinha sido feito por você. E se o cardápio era seu, aquele bingo não era um bingo qualquer, e portanto, se tivesse de indicar um bingo a alguém, que fosse o Circus.

Outro ponto disposto ao meu relance rotineiro era um minúsculo restaurante na avenida Moema próximo ao largo da igreja, duas ou três casas antes da Estalagem — lembra dela? Fechou —, porque ali o pai de um amigo dos meus meninos que, parece, mexia com máquinas de jogatina eletrônica resolveu abrir um negócio, e o menu, me informaram, era de sua autoria. O que, igualmente, me levava a comentar com qualquer um, sempre que passava em frente, que aquele restaurante era muito bom porque o cardápio não tinha sido elaborado por qualquer um, mas por você.

(Não resmungue de novo, mas nunca fui ao restaurante. Até tentamos uma vez, eu e os meninos, mas estava fechado, calhou justo na folga semanal. E depois fechou de vez, e hoje não sei o que tem lá. Creio que nada, estão derrubando tudo por aqui. Não faz mais sentido passar em frente e comentar com quem quer que seja que ali havia um restaurante cujo menu era assinado por você, uma vez que o restaurante não existe mais. O mesmo vale para o Circus, nunca comentei com ninguém que ali onde está aquela Renner ficava um bingo cujo cardápio fora concebido por um amigo assim-assado, você, no caso.)

E o terceiro sítio é exatamente a rua onde você mora, sempre morou, caminho percorrido diariamente, a dobra à esquerda quando a Ceci muda de sentido para chegar à Indianópolis, muitas vezes com uma parada no posto da esquina para comprar cigarros ou abastecer. Sua rua, de um único quarteirão, fica à direita de minha passagem e sempre dou uma olhada para me certificar de que está tudo bem naquele pequeno pedaço de São Paulo, a rua de um único quarteirão onde você mora, perto do posto, não longe da padaria, do bar do Batista, do Pão de Açúcar, junto das putas e travestis que por ali trabalham há muitos anos, resistindo aos vizinhos que as oprimem com faixas e cartazes e câmeras de vídeo prometendo filmar todo mundo e denunciar os motoristas libidinosos às autoridades competentes. Não sei se você reparou, acho que não porque não andava saindo muito de casa ultimamente, há dois ou três sobrados por ali com bandeiras do Brasil na janela. Tem disso no nosso bairro. Ô, se tem.

Há dois meses estive na sua rua, entrei pela contramão, mas não causei nenhum transtorno ao trânsito. Fui deixar seus livros para que fossem autografados e acondicionados nos envelopes plásticos devidamente etiquetados com os endereços dos destinatários. Era pouco depois da hora do almoço e você estava dormindo. Sagrada siesta. Você sempre foi de trabalhar de madrugada, nem todos compreendem o fuso horário de quem escreve. Voltei na semana seguinte para recolher os exemplares assinados e com dedicatórias e levá-los ao correio, o que fiz usando sacolas de supermercado. Não resmungue, a caixa de papelão estava rasgada. Você estava dormindo de novo, mas fique tranquilo, foram todos enviados da agência lá da avenida Jabaquara, aquela que fica em frente à igreja de São Judas. Guardei a nota e os números de rastreio, te avisei por mensagem do celular. Prometi passar na sua casa em outro horário, quando você não estivesse dormindo, não passei e você morreu e já era.

Trabalhamos juntos. Bastante, até. No jornal, na TV, na rádio. Na época do jornal, não nos víamos tanto. Você escrevia de casa e mandava as coisas por fax. Ou então o Jairão ia buscar seus despachos na rua de um quarteirão, às vezes era preciso ir a algum restaurante ou à emissora de TV onde você comentava os jogos. Se não ia o Jairão, ia o Edu. Lembra do Jairão e do Edu? Do Jairão, perdi a pista. Corintiano como você, só te elogiava e ficava todo feliz quando voltava para a Barão de Limeira com uma camiseta do Timão ou alguma outra coisa que você dava de presente para ele. Com o Edu falei ontem, sobre você. Porra, eu ia buscar as matérias na casa dele, foi a primeira coisa que o Edu disse. Está trabalhando com fabricação de instrumentos musicais. Surdos, repiniques, pandeiros, tamborins, essas coisas. Lembrava da rua de um quarteirão. Porra, mano, é como se fosse hoje, falou.

Copa de 90. A gente tinha um projeto de cobertura ambicioso no jornal. Aí veio o Plano Collor e eu tive de decidir quem ia. Cortamos a equipe toda. Eu era editor, imagina. 25 anos. Como é que um jornal daquele tamanho entregava uma editoria para um fedelho de 25 anos num ano de Copa do Mundo? (Olha eu aí falando de mim de novo. Não resmungue, você era cheio de fazer isso também e ninguém reclamava.) Decidi que fariam a cobertura na Itália nosso principal repórter de futebol, o principal repórter do jornal que morava em Madri, o rapaz que era correspondente em Milão e os dois do jornal-irmão, que ficava no segundo andar, e tinham arrumado um esquema patrocinado com a Fiat. E você, claro. Se não lembra de todos, nomes aos bois: Luciano Borges, Clóvis Rossi, Marcos Augusto Gonçalves, Chico Lang, Alcides Ferreira Jr. E você, claro.

Você, porque a gente tinha uma página diária de futebol internacional que sempre abria com seus textos. Já chegou o italiano?, eu perguntava da minha mesa, aos gritos, e o Jairão respondia que já estava na digitação, porque vinha batido à máquina e precisava ser digitado para entrar no sistema de edição daqueles computadores que viviam dando problema, e aí eu gritava para quem estava fechando a página: Então abre com o italiano! E o que vinha na página abaixo do italiano, que sendo rigoroso com nossos próprios padrões é Italiano, com o I maiúsculo, pois trata-se do nome do campeonato, o que vinha depois era menos importante. Você assinava como "Colunista da Folha". Não "Da Reportagem Local", ou "Da Redação", ou outra coisa fuleira qualquer. Colunista da Folha.

E escrevia divinamente, disgraziato. A gente era cheio de regras, normas, diretrizes, cânones, você diria, mas nada daquilo valia para seus textos. Às favas, o manual! Então, prélio, pugna, cotejo, peleja, tento, regalar, sobrepujar, adular, alentar, fartar, abrigar, aguçar, era isso que desfilava por seus textos, e ai de quem sugerisse trocar prélio por jogo, tento por gol, sobrepujar por vencer, adular por elogiar, abrigar por receber, ouviria de mim um sonoro cuidem dos seus luminares, porque dos meus cuido eu!

E assim foi você para Roma, e do começo de junho a meados de julho de 1990 entregamos aos nossos leitores o que de melhor um jornal de papel poderia ofertar. Não sei se você se lembra, creio que sim, mas tínhamos uma página 2 do caderno batizado minimalisticamente de "copa", em minúsculas, dedicada a colunistas convidados que com você e os demais dividiram aquelas folhas por mais de um mês, e por ali desfilaram, falando de futebol, Washington Olivetto, Eduardo Suplicy, Julio Medaglia, Ives Gandra Martins, Ademir da Guia, Isabel do vôlei, Nasi do Ira!, Hélio Bicudo, Fernando Henrique Cardoso, Dom Paulo Evaristo Arns, Tom Zé, Luiz Gonzaga Belluzzo, José Serra, Ivaldo Bertazzo, Plínio de Arruda Sampaio, Dalmo Dallari, Neto (ele mesmo, o craque, no auge do jogo de bola), Telê Santana e, cerejas do saborosíssimo bolo, Henry Kissinger, Umberto Eco e Eduardo Galeano.

Todos eles ilustrados por Angeli, Laerte, Glauco, Emílio, Orlando, e teve até treta política, artigo do Zé Dirceu ("Lazaroni tem um estilo igual ao de Collor") rebatido no dia seguinte pelo Cláudio Humberto ("O PT precisa aprender com um time vencedor"), é, rapaz, esses embates eram travados nas páginas do jornal, mais precisamente na nossa página 2 do caderno "copa" durante a Copa, e enquanto isso você escrevia e escrevia furiosamente lá de Roma, sobre tudo e sobre todos (os jogadores) e todas (seleções), e de lá de Roma pousavam sobre minha mesa tiras colossais de faxes onde se liam coisas como "depois de um toque a um companheiro, a corrida fulminante atrás do passe certeiro", "uma bandagem assustadoramente farta ainda envolve o tornozelo esquerdo de Maradona", "no meio do pavilhão, de maneira a desfrutar completamente de sua acústica providencial, o papa abençoou com exclusividade a delegação", "ao arisco Totó Schillaci caberá a incumbência de infernizar as pouco elásticas cinturas dos zagueiros irlandeses".

Puta merda. Como escreve, o disgraziato. E toca tudo para a digitação, e para o sistema dos computadores, e para as páginas do jornal, e para embrulhar peixe no dia seguinte, como ríamos de nós mesmos.

Na TV, juntos, dividimos bancadas comentando as coisas. Dividimos pastilhas de Halls daquela embalagem preta, muito ardida. Dividimos, na calçada, alguns Benson & Hedges mentolados, longos e elegantes. Dividimos o banco inteiriço do meu DKW quando uma carona se apresentava e você folgava em não ter de ir de táxi. Para mim era caminho, não custava nada, claro, e ainda levava de brinde as histórias. O primeiro gol do Mineirão. A invenção do creme de papaia com cassis. A cobertura dos atentados nas Olimpíadas de Munique em 1972. A criação da Veja e da IstoÉ, os jantares, os banquetes, as entrevistas, as viagens, as aventuras. Posso fumar? Pode, claro, deixa que eu abro o vidro pra você, e então me debruçava sobre ele para abrir o vidro do passageiro que tinha um truque para abrir, tem até hoje, e só então os dedos finos acendiam mais um B&H mentolado e os cabelos brancos esvoaçavam, puta que pariu, vou chegar em casa cheirando óleo dois tempos, dizia com a voz rouca sorrindo, e deixava o vento bater na cara e na fumaça mentolada.

Acabo de voltar do seu velório, eu dizia lá no começo, e notei que tinha bastante gente, gente bonita elegante e sincera, fazia frio e o frio tira dos armários os melhores casacos e botas e echarpes, percebi, me perdoe a sinceridade, um certo alívio das pessoas, alívio que atribuí ao saber que você não iria sofrer mais, porque os últimos anos foram duros, bem duros, todos ali sabíamos, havia uma ótima máquina de espresso, "nunca escreva o espresso do café com X", você dizia, chá, pães de queijo, o ambiente do casarão perto da Paulista ao mesmo tempo solene e acolhedor, e eu não conhecia quase ninguém mas simpatizei imediatamente com quem mandou uma coroa de flores anônima com a faixa "meia aliche, meia margherita".

Me aproximei muito discretamente do seu caixão, não gosto muito disso, não, deu para ver que tiraram sua barba, não estava legal, mesmo, e observei que havia uma faixa de campeão do Corinthians, uma flâmula da Juve, e que você vestia o que parecia ser uma camiseta ou uma jaqueta da Azzurra.

E em vez do seu rosto, Sílvio, vi a foto de um gol.

************

LEIA MAIS NA NEWSLETTER