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Flavio Gomes

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Na Fórmula 1, controlar teto de gastos é enxugar gelo

Mercedes reclama da Red Bull: equipe ameaça estourar teto em 2023 - Divulgação/Mercedes
Mercedes reclama da Red Bull: equipe ameaça estourar teto em 2023 Imagem: Divulgação/Mercedes

Colunista do UOL

17/10/2022 04h00

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Segunda-feira passada, a FIA emitiu comunicado dizendo que três equipes cometeram irregularidades no primeiro ano de vigência do teto de gastos da F-1, 2021. Os números dos dez times participantes do campeonato foram entregues por diligentes contadores e, então, analisados, esmiuçados e auditados pela entidade. No fim de tudo, Red Bull, Aston Martin e Williams acabaram sendo pegas naquilo que, aqui no Brasil, a gente chama de malha fina quando faz o Imposto de Renda.

Aston Martin e Williams foram rapidamente perdoadas. Cometeram, ao que tudo indica, "erros processuais". Como quando a gente preenche alguma coisa errada na nossa declaração anual — coloca os gastos com saúde no campo de despesas com escola, por exemplo; acontece, e é só mandar uma retificação. Alguma burocracia boba e tudo bem. Da próxima vez prestem mais atenção.

Mas a Red Bull, não. Depois de estudar as cifras e fazer e refazer as contas, os gestores do teto orçamentário da FIA concluíram que soma daqui, tira dali, divide e multiplica acolá, os caras... estouraram! Gastaram mais do que podiam. Um estouro, nas palavras gentis da entidade, "mínimo". Nada demais, não se preocupem. A gente resolve.

Pois é. A equipe nem esperou o comunicado ser expelido por aquela impressora bonita da diretoria e já mandou nas redes sociais o protesto: não gastamos mais coisa nenhuma e queremos ver direitinho essas despesas aí que estão dizendo que a gente fez.

Depois, um jornal holandês, país de Max Verstappen, informou, sem revelar as fontes, que o estouro do orçamento teria relação com nababesco jantar de comemoração que a equipe promoveu no fim da temporada, mais uns carnês de planos de saúde e alguns extras pagos a funcionários.

O jantar, os planos de saúde e os extras não foram negados pela Red Bull.

Na prática, não importa se o time exagerou na burrata de entrada, no funghi porcini do primeiro prato, no preço do bife japonês para o segundo, na quantidade de tiramisù com café superfaturado de sobremesa, no vinho que poderia ter sido comprado ali pertinho num Tesco Express da vida e acabou vindo da França, comprado num desses aplicativos que cobram um frete absurdo. Ou se a empresa, em vez de um Amil basiquinho, partiu para um plano do Sírio-Libanês com UTI VIP para todos seus funcionários.

Nada do que for alegado como motivo para os gastos excessivos poderá ser comprovado, nem será aceito pelos adversários. No máximo, essas explicações vão virar anedotas e folclore — como já viraram neste divertidíssimo canal do YouTube, indicado nesta coluna na parte do texto que apenas os assinantes recebem; faço a gentileza de indicar aqui também.

É muito difícil controlar gastos de uma operação tão complexa como a de uma equipe de F-1. Há infinitas maneiras de maquiar os números, driblar a fiscalização, terceirizar (e subfaturar) serviços, salários, compra de material, produção de peças, praticamente tudo. Um carro da categoria, segundo um material de divulgação publicado recentemente pela Renault, é formado por 14.500 componentes individuais — de parafusos a conectores, de sensores eletrônicos a engrenagens de câmbio — e achar que é possível saber tudo que sai de dentro de uma fábrica de F-1 é como acreditar na distribuição pública de mamadeiras eróticas ou na repentina conversão de Belzebu.

O teto de gastos do ano passado foi de US$ 145 milhões por equipe, valor reduzido para US$ 140 milhões neste ano. Em 2023, nova redução: US$ 135 milhões. Nessa conta não entram os salários dos pilotos e de três indivíduos eleitos como peças-chave do time (diretor esportivo, CEO, projetista, engenheiro chefe, cozinheiro, o que a equipe escolher), além das despesas de promoção e marketing e mais um caminhão de itens no capítulo "Exceções" que vão, sem brincadeira, da letra "a" até "y" — contas de água e luz, gastos com hotéis e passagens, licenças maternidade/paternidade de funcionários etc.

E o que a FIA controla (ou acha que controla)? Valores que, de alguma maneira, influam no desempenho dos carros. Aí entram, por exemplo, os custos de elementos cuja produção é mais fácil de aferir — como bicos, asas, volantes, assoalhos, chassis, suspensões, tudo que pode ser marcado, sei lá, com códigos de barras. Também tem tabela de preço para tempo de uso de túnel de vento, algo que é possível monitorar. E também coisas meio abstratas, como medir o valor da hora de trabalho de um engenheiro num determinado programa de computador, digamos — se o cara virar a noite em casa desenhando ou testando alguma coisa num laptop, quem vai saber?

As adversárias da Red Bull estão estrilando, e com razão, porque se alguém gastou mais do que podia isso tem nome, e o nome que tem sido usado é trapaça. Afinal, se teve gente que precisou economizar até em guardanapo e cápsula de café, não é justo que o bonitão ali do lado torre fortunas em desenvolvimento e produção e disso obtenha alguma vantagem técnica. Toto Wolff, da Mercedes, falou que o estouro do teto em uma única temporada pode beneficiar uma equipe por dois ou três anos, e já considera, dependendo da punição que a Red Bull levar, um orçamento "pré-estourado" para 2023. Assim, não precisará demitir gente e reaproveitar peças usadas como — ele jura — teve de fazer neste ano.

Essa é a grande pergunta, agora: qual punição será aplicada à Red Bull? O regulamento financeiro da F-1, um calhamaço de 56 páginas que pode ser lido aqui, fala em "Minor Overspend Breach" quando a indigitada escuderia estourar o teto em até 5% do valor estipulado. De largada, então, como a Red Bull está sendo apontada pela FIA como uma "minor- overspend-breacher", estamos falando de um valor que pode chegar a US$ 7,25 milhões quando considerado o teto de US$ 145 milhões de 2021.

Gastos acima do teto nessa ordem de grandeza, os 5%, submetem a infratora a uma punição financeira não especificada e/ou a "Minor Sporting Penalties" — numa tradução livre, penalidades esportivas leves, se é que me entendem. No capítulo das "Minor Sporting Penalties", temos no cardápio: reprimenda pública (podem rir), perda de pontos no Mundial de Construtores, suspensão por uma ou mais corridas, restrição do tempo para testes aerodinâmicos (uso de túnel de vento, basicamente) e redução do teto de gastos para a temporada seguinte.

Se a Red Bull não se explicar direito ("o funghi porcini está pela hora da morte", dirá Christian Horner), creio que será multada. Um valor alto, talvez, mas atenção: multas esportivas não entram no teto de gastos. É só vender umas latinhas a mais e tudo ficará bem. Ninguém vai tirar ponto da equipe, muito menos o título de Verstappen de 2021. Os outros times vão torcer seus narizes e externar alguma indignação com indiretas e emojis no Twitter. A FIA mostrará, pelo valor da multa, que é rigorosa e que não vai tolerar picaretagens.

Mas vai continuar enxugando gelo, porque depois de torcer seus narizes, todo mundo — inclusive a Red Bull — vai sair atrás de orçamentos fabulosos de jantares e de planos de saúde que incluam o Einstein e a Rede D'Or.

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