Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
F-1 em tempos de Copa: a última vez com a amarelinha
Esta é parte da newsletter do Flavio Gomes, enviada ontem (27). Na newsletter completa, apenas para assinantes, o colunista também comenta sobre a maratona de treinos em Abu Dhabi, a confirmação de Daniel Riccardo na Red Bull e a provável retirada da China do calendário por causa da covid. Quer receber antes o pacote completo, com a coluna principal e mais informações, no seu e-mail, semana que vem? Clique aqui.
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Devo ser a milionésima pessoa a escrever sobre a amarelinha, o resgate da nossa camisa e das nossas cores etc. Creio que o assunto está esgotado, cada um veste a camisa que bem entender e, no que me diz respeito, levará um bom tempo, talvez todo o tempo do mundo, para dissociar a camiseta da CBF dos dementes que nos últimos quatro anos revelaram orgulhosos seu apreço pela tortura, pelo desrespeito à ciência, pela destruição da cultura, por qualquer sentimento humanitário que nos distingua de hienas raivosas, essa gente racista e misógina que detesta livros e ama as armas, que discrimina, agride, cultua o ódio, cretinos em sua essência.
Essas pessoas continuam por aí, vagando feito zumbis diante de quartéis, suplicando por uma intervenção verde-oliva, louvando pneus, lambendo coturnos e canos de fuzil, fechando estradas, tacando fogo em caminhões e ambulâncias, fazendo gestos nazistas, pregando golpe de estado, evocando uma palavra de salvação de seu capitão com erisipela.
Vestem a amarelinha.
Nascido em 1964, feitas as contas, estou vivendo minha 15ª Copa do Mundo. A pior de todas, disparado, pois que realizada num país infame que jamais, em hipótese alguma, mereceria a distinção de sediar um evento desse tamanho. Nenhum país cujo regime criminaliza homossexuais, reprime mulheres e trata operários de países miseráveis como escravos é digno de receber uma Copa, ou uma Olimpíada, ou um GP de Fórmula 1, ou um torneio de par ou ímpar.
Como escreveu dia desses o jornalista Carlos Eduardo Mansur, num texto definitivo sobre o assunto, "calar-se diante da repressão às mulheres, da perseguição religiosa, dos abusos contra trabalhadores e da criminalização de identidades de gênero não é respeito a uma cultura. É conivência com a barbárie". E se não há, como segue Mansur, nenhuma nação que possa se jactar de deter o monopólio da virtude, que ao menos não sejam recompensadas aquelas que simplesmente ignoram fundamentos básicos de direitos humanos, civilidade e, aí sim, respeito às culturas de outros 31 países que disputam o torneio.
Voltemos à amarelinha. Quem de nós um dia não a vestiu? Em 1970, quando o escrete canarinho desfilou pela 23 de Maio num caminhão de bombeiros com a Jules Rimet nas mãos de Carlos Alberto, eu estava sobre uma ponte no colo do meu pai com uma camiseta amarela que tinha o escudo da CBD pregado no peito com colchetes. Entre 1972 e 1974, morando no Rio, cansei de ver a seleção no Maracanã, onde o Brasil sempre jogava, na Copa do Sesquicentenário e na preparação para o Mundial de 1974, na Alemanha. Sempre com casa cheia, 100 mil era fichinha, ame-o ou deixe-o. Aos 14 anos, em 1978, deixei de fazer uma prova no colégio para ver um jogo do Brasil e levei um zero rotundo para deixar de ser besta — olhando para trás, bestas foram o professor e a escola, afinal era Copa do Mundo. Em 1982, chorei no terceiro gol de Paolo Rossi, e em 1986 lamentei sinceramente a derrota para a França por saber que aquela geração de Sócrates, Zico & cia nunca mais teria a chance de ganhar um Mundial.
E acabou. Porque de 1990 para cá sempre trabalhei nas Copas, aqui ou nos países onde elas aconteceram, e o encanto juvenil com a seleção se esvaiu diante das imposições da profissão.
Mas voltei a vestir a amarelinha algumas vezes, sim, e no meu caso é curioso que sei dia, mês e ano da última vez em que fui visto com uma camiseta da seleção, e foi num fim de semana de corrida de F-1, a sexta-feira do GP da Europa de 2002, 21 de junho, em Nürburgring.
Aqui talvez seja necessário esclarecer que desde que me tornei jornalista profissional os jogos da seleção brasileira se tornaram muito mais um evento para me divertir com amigos do que um caso de vida ou morte para um torcedor apaixonado — nesse quesito, qualquer partida da Portuguesa pela Série D numa quarta-feira à noite no Canindé, qualquer uma, me inflige muito mais sofrimento e aflição do que uma decisão de Copa do Mundo com o Brasil em campo. Resumindo, não ligo muito para a seleção, embora, no que possa parecer uma contradição, adore Copa do Mundo, seus dramas, suas histórias, seus heróis efêmeros ou eternos. Falando nisso, ave Maradona, ave Messi!
Feito o esclarecimento, voltemos ao 21 de junho de 2002 na Alemanha. O Brasil jogaria contra a Inglaterra pelas quartas de final da Copa do Japão e da Coreia do Sul, e como a F-1 não interrompe seu calendário para que possamos nos concentrar apenas no futebol, o que deveria fazer, havia uma corrida marcada para Nürburgring naquele fim de semana. E como há muitos ingleses na F-1, em todas as equipes e na imprensa em geral, é claro que me dediquei com afinco ao objetivo maior do futebol, que é encher o saco dos outros encarnando o mais pentelho dos Pachecos. Para os que não têm ideia de onde vem a expressão "pachequismo", aqui se explica.
Felipe Massa fazia seu ano de estreia na categoria e organizamos uma torcida brasileira para ver o jogo no motorhome da Sauber, sua equipe, coalhado de ingleses. Essas coisas a gente marcava com antecedência: eu levava cachaça do Brasil para fazer caipirinha, e com alguma boa vontade os cozinheiros da equipe preparavam algo que remotamente lembrasse uma feijoada.
O time dirigido por Felipão ganhou por 2 a 1 de virada, com um gol espírita de Ronaldinho no começo do segundo tempo — ele seria expulso logo depois —, e depois passaria pela Turquia na semifinal para decidir o título contra a Alemanha. Na final, naquela vida louca de aviões, hotéis e viagens sem fim, eu estava em Londrina onde, logo depois da decisão, trabalharia como comentarista da TV Bandeirantes numa corrida de Fórmula Renault narrada pelo inesquecível Luciano do Valle. Quando ele morreu, em 2014, escrevi sobre esse dia.
Foi divertido torcer pelo Brasil na frente de um monte de ingleses, em minoria, e tem até uma foto minha abraçando o Massa no segundo gol — a imagem chegou a sair em alguma revista britânica dias depois. Mais para perturbar os gringos do que qualquer outra coisa. Isso para compensar a chateação de quatro anos antes, quando a final da Copa de 1998 aconteceu no dia do GP da Inglaterra, em Silverstone, e também nos planejamos bem para ver o jogo depois da corrida, numa casa que alugamos perto do autódromo. O contingente de jornalistas brasileiros era grande, compramos carne para fazer churrasco, cerveja, amendoim, salgadinhos, conseguimos piratear a narração do Galvão Bueno usando uma linha telefônica para jogar o áudio na TV, e no fim foi aquele passeio de Zidane & seus amigos, e na corrida seguinte, para não ter de aguentar os colegas franceses, comprei uma camiseta da França e passei três dias dizendo que tinha me naturalizado, e que não me aborrecessem com aquela merda de futebol.
A última vez que vi um jogo da seleção brasileira num estádio foi há dez anos num amistoso no Morumbi contra a África do Sul. Levei meus moleques, que já naquele dia mandaram o dedo do meio para Neymar várias vezes. Jogo horrível, 1 a 0, gol de Hulk. Foi a última vez que vesti uma camiseta da seleção, mas porque era uma branca, retrô, igual à usada até a Copa de 1950. Comprei no impulso e precisava vesti-la pelo menos uma vez, e a ocasião se apresentou. Neymar era novinho, mas já me parecia tão bobo quanto é hoje — não errei a avaliação.
Dez anos depois, o rapaz coleciona polêmicas e títulos, não chegou onde achava que chegaria, está longe de ser uma unanimidade técnica, tema que me interessa menos, e mais distante ainda de ser um personagem adorado pela maioria do povo deste país mais dividido do que nunca. Ao contrário, tem uma postura normalmente arrogante e individualista, é um exibicionista profissional e frívolo, e para estragar de vez sua imagem declarou-se fã do capitão com erisipela, a quem prometeu dedicar seu primeiro gol na Copa. Não sei nem se fará algum, espero que não — para não ter de testemunhar tamanho constrangimento internacional.
Quanto à amarelinha, se seguir voando como um pombo quem sabe um dia eu e tantos outros voltemos a olhar para ela com alguma simpatia.
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