Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
No esporte, sempre haverá vozes que se levantam
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Berlim, agosto de 1936. A Alemanha de Hitler usa a Olimpíada para provar ao mundo a superioridade da raça ariana. Um americano negro, Jesse Owens, ganha quatro medalhas de ouro no atletismo. Consta que o ditador alemão chegou a acenar para ele, cumprimentando-o. O próprio Owens contou isso em diversas declarações. Mas quando volta aos EUA, não recebe nem um telegrama de felicitações do presidente Roosevelt e passa a ganhar a vida disputando corridas contra cavalos, cães e automóveis.
Washington, abril de 1967. Num discurso a estudantes da Universidade Howard, Muhammad Ali, convocado pelo Exército americano, avisa que não vai lutar no Vietnã.
Por que me pedem para vestir um uniforme e jogar bombas em pessoas marrons no Vietnã enquanto os negros em Louisville são tratados como cães? O verdadeiro inimigo do meu povo está aqui. Se eu acreditasse que uma guerra traria liberdade e igualdade para 22 milhões de pessoas do meu povo, nem precisariam me recrutar. Iria amanhã. Mas tenho de obedecer às leis da Terra ou às leis de Alá. Não tenho nada a perder defendendo minhas crenças. Assim, vou para a cadeia. Estamos presos há 400 anos."
Condenado a cinco anos de prisão — pagou fiança, recorreu em liberdade e não chegou a ir para a cadeia —, perdeu seus cinturões e teve a licença para lutar em território americano cassada. Em 1971, a Suprema Corte dos EUA cancelou a pena.
Cidade do México, outubro de 1968. O americano Tommie Smith vence os 200 m rasos nos Jogos Olímpicos, com seu compatriota John Carlos em terceiro. Ambos negros. O australiano Peter Norman, branco, fica com a medalha de prata. Na premiação, os dois atletas dos EUA seguem para o pódio sem os tênis, usando meias, abaixam a cabeça e erguem o punho com luvas pretas. Norman os apoia — usa no peito um adesivo defendendo os direitos humanos. O gesto de protesto contra o racismo lembra os Panteras Negras. O Comitê Olímpico Internacional exige que os dois sejam desligados da delegação americana que, ameaçada, os envia de volta para casa. Norman, cuja história é divinamente contada aqui por Dorrit Harazim, cai em desgraça em seu país, mais ainda quando sai em defesa dos aborígenes exterminados na Austrália durante a colonização.
Munique, setembro de 1972. Um comando de oito terroristas do grupo Setembro Negro, ligado à Organização para Libertação da Palestina, invade o alojamento da delegação israelense na Vila Olímpica, faz 11 atletas reféns, pede a soltura de prisioneiros em Israel, exige helicópteros e um avião para fugir da Alemanha. Mas uma operação desastrosa das forças de segurança locais acaba com todos os atletas, cinco terroristas e um policial mortos. Os Jogos são retomados dois dias depois.
Montevidéu, julho de 1976. Depois de derrotar o Rentistas por 2 a 1 no acanhado estádio Luis Franzini, os jogadores do Defensor, primeiro time pequeno a conquistar o título uruguaio — até então apenas Peñarol e Nacional haviam sido campeões na era profissional —, dão a volta olímpica "ao revés", em gesto tido como protesto contra a ditadura militar no país. A equipe violeta era dirigida por um comunista de carteirinha, José Ricardo De León, como relata aqui o jornalista Roberto Jardim.
Moscou, julho de 1980. Os Estados Unidos, no auge da Guerra Fria, lideram um boicote à Olimpíada promovida pela União Soviética. Quatro anos depois, países do bloco comunista boicotam os Jogos em Los Angeles.
São Paulo, abril de 1984. Diante de um milhão de pessoas reunidas no Vale do Anhangabaú, o meia Sócrates, do Corinthians, diz que se a emenda Dante de Oliveira fosse aprovada, promovendo eleições diretas para a presidência da República, não deixaria o Brasil para jogar na Europa. A emenda das Diretas Já não passa no Congresso e ele é negociado com a Fiorentina, da Itália. Dois anos antes, ao lado do centroavante Casagrande, do lateral Wladimir e de outros atletas, Sócrates liderara o movimento batizado como Democracia Corinthiana, em plena ditadura militar.
Doha, novembro de 2022. Jogadores da Alemanha colocam as mãos sobre a boca em protesto contra as imposições da Fifa, que ameaça os participantes da Copa do Qatar que insistirem em denunciar o regime homofóbico, misógino e escravocrata do país.
Paris, dezembro de 2022. O presidente da Federação Internacional de Automobilismo, Mohammed bin Sulayem, determina que manifestações de cunho político, como os gestos antirracistas de Lewis Hamilton e os discursos a favor do meio ambiente e da diversidade promovidos por Sebastian Vettel, estão proibidas em corridas de Fórmula 1.
E ainda há quem acredita que esporte e política não se misturam, defendendo uma neutralidade estúpida que nunca existiu, nunca existirá, porque no mundo sempre haverá aqueles que levantam a voz. E sempre haverá vozes que devem ser ouvidas.
As outras, que sejam condenadas ao silêncio da irrelevância.
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