Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Ode aos criadores dos nomes das cores, geniais e anônimos
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Os últimos carros apareceram, neste momento estão todos encaixotados e, mais para o final da semana — ufa! —, vão à pista para abrir a temporada da Fórmula 1 em 2023. Serão três dias de testes no Bahrein (de quinta, 23, a sábado, 25), com tempo suficiente para se saber se o que saiu das pranchetas e computadores presta ou não. Pelo horário de Brasilia, as sessões começarão às 4h e terminarão às 13h30. Lá na ilhota do Golfo Pérsico, seis horas à frente no fuso, as atividades vão das 10h às 19h30, com pausa para o almoço, claro. Cada piloto terá, em média, um dia e meio de treino. Depois, eles só se veem de novo na sexta, 3 de março, na abertura dos treinos para o GP do Bahrein, o primeiro dos 23 deste campeonato.
E na sexta (24) estreia a quinta temporada de "Drive to Survive" na Netflix, série que aqui se chama "Dirigir para Viver", algo assim. Nome horrível. "Drive to Survive" também é meio bobo, mas soa melhor, em inglês, que a tradução em português. Já tem trailer, e pelo jeito a estética e a "narrativa" serão as mesmas das quatro temporadas anteriores — que ajudaram muito a popularizar a F-1 nos EUA e também, mundialmente falando, numa faixa etária que vai, sei lá, dos 12 aos 25 anos; estou chutando. Serão dez episódios contando como foi o Mundial de 2022 pelo olhar "netflixiano", e a novidade é a volta de Max Verstappen ao elenco fixo, ele que tinha se recusado a participar das gravações em 2021 por achar tudo meio babaca. Assim vai chegando ao fim o período de abstinência de F-1 e nós que gostamos de corridas ficamos todos felizes.
Mas não é disso que quero falar hoje. Muito menos estou disposto a celebrar com elegias nostálgicas o retorno do campeonato, menos ainda a proferir árias reverentes a pilotos, equipes e circuitos históricos.
Quero falar de cores.
Sim, de cores. Porque se já era perceptível a opção pelos carros na lata — no caso, na fibra de carbono — desde as primeiras imagens dos modelos 2023, a coisa ficou escancarada na apresentação da Mercedes, semana passada. A equipe alemã retomou o preto usado em 2020 e 2021, abrindo mão do tradicional prateado.
Ocorre que nas duas temporadas supracitadas o preto foi escolhido por razões político-humanitárias, a partir dos pleitos antirracistas de Lewis Hamilton. A elevação de sua voz nos protestos contra a violência sobre a população preta no mundo inteiro levou o piloto a sugerir que a equipe expressasse sua posição mudando a cor de seus carros. E foi assim por dois campeonatos, voltando ao prateado no ano passado — com um carro, diga-se, ruim de doer.
A volta ao preto, neste ano, não tem nada a ver com a militância de Hamilton, porém. Que, aliás, e aqui vale um parêntese, não é só da boca para fora. Lewis não fez apenas com que a Mercedes pintasse carros de corrida de preto. Exigiu, também, que a companhia alemã instituísse internamente o programa "Accelerate 25", cujo objetivo é fazer a equipe compor seu quadro de funcionários com pelo menos 25% de pessoas pertencentes a grupos minoritários — de cor, gênero e etnia. Nos últimos dois anos, como consequência do projeto, o número de mulheres trabalhando na operação de F-1 da Mercedes subiu de 12% para 16% e as pessoas de minorias étnicas foram de 3% a 9%. Pode parecer pouco, mas é um começo. Não basta falar, tem de fazer.
Voltando à cor do carro, o que motivou a escolha do preto, como eu dizia, não teve nada a ver com Hamilton. E sim com peso. Sem a pintura prateada, o carro da Mercedes fica 3 kg mais leve. Porque tinta pesa, claro — já carregou um latão de Suvinil? A maior parte do W14 está crua, sem pintura; na fibra de carbono, que é preta como a noite.
E uma rápida olhada nas imagens divulgadas pelas outras nove equipes será suficiente para perceber que a Mercedes não foi a única a deixar sem pintura porções enormes de seus carros. Podem ter certeza que tudo que parecer preto na F-1 neste ano é, por assim dizer, ausência de tinta. E não preferência de designers e estilistas. Tudo em nome do peso. Uma das obsessões de projetistas, em qualquer categoria, é tirar todo e qualquer peso desnecessário de um carro. Vale qualquer coisa. Se possível, senhor piloto, aproveite e faça xixi antes da largada. Ajuda, também.
Assim, a cor que batizo agora como Preto Tira Peso passa a fazer parte dos hits cromáticos do inverno europeu, e pode ser encontrada também cá no verão dos trópicos com os nomes Preto Fibra de Carbono ou Preto que Emagrece, dependendo do fabricante, caso alguém queira comprar uma latinha de 1/4 nas Tintas MC, tudo em tintas pra você.
O que me leva à motivação maior desta coluna, já com ares de despedida, que vem a ser — agora sim — fazer uma ode aos nomes das cores e aos seus geniais e anônimos criadores. Refiro-me aos discretos funcionários das fábricas de automóveis a quem executivos despóticos, no passado, ordenavam aos berros que concebessem em parcos minutos, perto do lançamento de novos carros e pressionados por publicitários petulantes e espaventosos, epítetos, alcunhas, cognomes e apelidos extravagantes para colorações que poderiam ser, simplesmente, chamadas do que são: branco, preto, cinza, verde, vermelho, amarelo, azul.
E, então, emergia das profundezas da alma desses funcionários nunca notados pela chefia nem por ninguém, que ocupavam salinhas escondidas em algum canto da fábrica, de paredes amareladas e talvez sem janelas, apenas com um ventilador Arno barulhento sobre a escrivaninha de madeira lascada ao lado uma velha Remington com teclas desgastadas, o espírito de Carlos Zéfiro, que tirava o paletó, afrouxava a gravata, arregaçava as mangas da camisa acima dos cotovelos e soltava seus demônios.
No caso do nosso funcionário responsável pelos nomes das cores — preparem-se que a lista é grande e não vou lhes poupar o trabalho da leitura, leiam se quiserem, se não quiserem, não leiam, mas se forem ler, procurem imaginar o que se passava na cabeça de nosso funcionário com um Minister aceso no canto da boca batucando furiosamente a Remington, enquanto o telefone de baquelite gritava, estridente, porque o chefe queria o nome da cor já, não daqui a pouco, e não me venha com vermelho cereja, amarelo ouro, verde bandeira ou azul celeste, rapaz, como é seu nome mesmo?, não importa, você não é pago para ter ideias idiotas, se fosse assim eu pedia para o sobrinho da minha mulher, aquele que ganhou um estojo de 24 cores da Faber Castell do meu cunhado que custou uma fortuna, e o desgraçado acabou de comprar uma batedeira nas Lojas Pirani que também custou uma fortuna, e minha mulher quer uma igual, então não me venha com branco neve nem preto noturno que já tenho problemas demais, queremos nomes fortes, criativos, diferentes, vamos, você tem quinze minutos! —, retomando, no caso de nosso funcionário das cores, os demônios possivelmente habitavam o mesmo sítio mental que os tinhosos do catecismo do Zéfiro, e assim nasceram (já disse, preparem-se porque a lista é longa) na GM, para pintar Opalas, Chevettes e aparentados, o Prata Inca, o Amarelo Candeias, o Rosa Pantera, o Verde Menta, o Bege Lido, o Turquesa Neptuno, o Vermelho Saturno, o Marrom Tropical e o Laranja Boreal. Na Ford, ali perto, Corcéis, Belinas, Mavericks e Landaus seguiriam para as revendas coloridos de Verde Tortuga, Castanho Persa, Bronze Fogo, Vermelho Cadmium, Bege Camurça, Amarelo Augusta ou Azul Nautilus. Preto? Bali, doutor, resolvi chamar de Preto Bali, responderia nosso funcionário com indecências poluindo seus pensamentos imundos. Na Volkswagen de enormes estoques de Fuscas, Brasílias, TLs, Variants, Kombis e Karmann-Ghias esperando para serem carregados nas cegonhas, nosso funcionário desemprenhou o Cinza Cascalho, o Ocre Marajó, os Amarelos Manilha, Manga e Margarida, o Violeta Pop, os Azuis Pavão, Golfo e Ultramarino, os Vermelhos Sideral e Molibdênio, e os imbatíveis Verdes Místico e Hippie. Por fim, na um pouco mais sisuda Chrysler, ali adiante, nosso quarto funcionário engendrou, para tingir os Dodges Charger, Dart e SE, além dos problemáticos 1800 e Polaras, o Marrom Sumatra, o Castanho Trípoli, o Verde Minuano, os Vermelhos Dinastia e Etrusco, o Branco Madagascar e o Azul Meia-Noite.
Hoje, 82% dos carros no mundo são pintados de branco, preto ou cinza. Sobram 18% para as outras cores, e é por isso que nossos anônimos e rutilantes funcionários foram perdendo seus empregos ao longo do tempo, para finalmente desaparecerem numa nuvem opaca e descolorida. E nunca saberei quem foi que batizou o vermelho do meu Dodginho de Índio, ou o verde do meu DKW de Caruá.
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