Nas Olimpíadas, a raça humana se divide em nós, meros mortais, e os deuses
A raça humana é uma só, certo? Errado. Durante os Jogos Olímpicos, a raça humana se divide em duas categorias: nós, meros mortais, e os deuses do Olimpo.
É difícil acreditar que somos da mesma espécie. A força, a velocidade, o equilíbrio e a agilidade colocam os atletas olímpicos em outra categoria. A comparação é inevitável.
Daqui a duas ou três edições das Olimpíadas, os cientistas provavelmente terão que rever as leis da física — e do físico humano.
A final dos 100 metros rasos em Paris foi histórica. Pela primeira vez na modalidade, os oito participantes correram abaixo dos 10 segundos.
Cá entre nós? não bateu a curiosidade de saber em quanto tempo você corre essa distância?
Foram 9 segundos e 784 milésimos, do atual campeão olímpico, Noah Lyles. Apenas cinco milésimos de diferença para o segundo colocado. Em 10 segundos, eu não consigo levantar do sofá para pegar o controle na mesa da sala.
Nas ginásticas artística, rítmica e acrobática, não podemos fazer outra coisa senão admirar. E, claro, sem ninguém vendo, tentar executar uma estrelinha.
Ginastas fazem movimentos com tanta perfeição que fico chocado quando um mero saltinho fora do lugar é penalizado com tanta impiedade depois de um duplo mortal parafuso invertido.
E quando acontece um desequilíbrio mínimo que culmina na queda da trave? Ela tem apenas 10 centímetros de largura. Pelas leis da física dos mortais, o normal seria cair. Para esses super-humanos, cair da trave é um erro sem perdão.
O problema está no esporte ou sou eu, que não entendo direito os critérios, que julgo serem muitas vezes subjetivos? Tenho dificuldade com esportes cujo julgamento não é baseado em tempo, distância ou gols.
O fato é que essa riqueza de modalidades torna o evento muito mais divertido.
Aumentam as chances de conhecermos outros tipos de super-homens e super-mulheres.
Por que ainda somos conservadores quando se trata de Olimpíada? Quando uma nova modalidade é anunciada, há quem comente: "Isso é esporte?" E há uma boa parte de saudosistas que concordam: "Pois é, não se fazem mais torneios como antigamente".
Se formos pesquisar as primeiras edições, só tínhamos corridas. Aliás, a disputa se resumia a uma única corrida.
Depois vieram as lutas, a natação, os saltos em altura ou em distância. E, em algum momento, entraram os esportes coletivos. A ginástica artística, os saltos ornamentais, o nado sincronizado. Alguns talvez ainda lamentem essas novidades, mas, pelo sucesso das modalidades, acredito que a maioria já as recebe de boa.
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Quero receberAtividades que eram apenas disputas entre amigos agora são levadas a sério. É o caso do tênis de mesa, evolução do ping pong de sábado à tarde.
Em Tóquio, foram introduzidos o surfe, o skate e a escalada esportiva. E nós, do sofá, passamos a nos divertir ainda mais. É bacana ver esportes que eram considerados passatempo de vagabundo agora com status olímpico e, o que é melhor, engrossando nosso quadro de medalhas. Gabriel Medina, Tatiana Weston-Webb e Rayssa Leal hoje estão inspirando meninas e meninos a olharem para suas pranchas e skates de um outro jeito.
O karatê, o beisebol e o softbol não voltaram desta vez. Fiquei surpreso com a exclusão do karatê. Tinha a impressão de que era um esporte olímpico consagrado, como seus primos, o taekwondo e o judô. E o beisebol deve ter sido excluído porque não precisamos de mais esportes para dar medalha para os Estados Unidos.
Alguns esportes não recebem a consideração que merecem. Um exemplo é a marcha atlética. Não é uma caminhada, também não é uma corrida como estamos habituados. E as pessoas que decidem praticá-lo são alvo de piadinhas. Caio Bonfim relatou que, desde o primeiro dia em que foi treinar na rua, questionavam sua masculinidade. Mas isso só o motivou ainda mais. Vem de uma família de marchadores. Sua mãe, Gianetti Bonfim, é octacampeã brasileira e sua treinadora.
Agora que voltou com sua medalha de prata no peito, virou motivo de orgulho. E aqueles que gozavam dele agora querem que Caio pare para comemorar com eles e conte como foi conquistar essa medalha para nós. Para nós, quem, cara pálida?
O esporte vinga. Bia Souza conta que começou a lutar judô para sublimar o bullying. Imagine como deve ter sofrido uma garota gorda e preta na adolescência. Já pensou se ela pudesse voltar no tempo até aquela turma que tirava com sua cara? Eu ia adorar ver a Bia desfilando com sua medalha de ouro no recreio.
Rebeca Andrade, muito antes de ser o centro das atenções do planeta, muito antes de desbancar Simone Biles, deve ter passado por situações bem desagradáveis quando era apenas uma menina de pele preta.
É inevitável pensar na nossa ginasta de ouro sem lembrar de sua antecessora, a incrível Daiane dos Santos. Rebeca só foi possível porque antes houve uma Daiane. Aí vemos a importância da referência.
Não podemos esquecer dos estranhos sentimentos que se apoderam de nós, meros mortais torcedores. Na ânsia de vermos mais medalhas verde-amarelas, pegamos nossos escrúpulos e guardamos no fundo da gaveta até o fim da Olimpíada.
Esse sentimento foi brilhantemente traduzido pelo professor Luiz Antônio Simas:
"O Brasil tem me obrigado a torcer contra todo mundo nos jogos: já torci por queda de crianças no skate, torção de joelho na ginástica, derrotas no futebol, no basquete, no tênis de mesa, penalizações no judô e na marcha. O verdadeiro espírito olímpico é o espírito de porco."
Errado ele não está. Afinal, somos meros mortais.
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