Coronavírus desafia hábitos e é desafiado: "Não vou parar de jogar poker"
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Resumo da notícia
- Clubes de poker de São Paulo fecham as portas
- Idosos, parte do grupo de risco, continuaram frequentando as mesas até o apagar das luzes
- Alguns desafiam a pandemia e pretendem seguir jogando em casa
Morcego, 65 anos, joga baralho desde criança. Nunca parou. E não pretende parar.
Ele é uma das pessoas que não pararam de frequentar clubes de poker em São Paulo, apesar da ameaça do coronavírus. Com o fechamento, total ou parcial, de todos os clubes da cidade, vai precisar mudar a atitude.
Mas o hábito? Nem pensar.
"Já combinamos, vamos jogar na casa de um amigo", conta ao blog.
O apelido "morceguinho" foi adquirido nas mesas e já lhe rendeu bullying entre amigos - afinal, a principal versão para o surgimento do coronavírus entre humanos veio da alimentação de morcegos na China. Ele jogava diariamente no HomeGame Poker Club, na Lapa. Com o fechamento parcial do clube, transferiu-se para o Vegas, que fica no Sumaré - o maior clube da cidade, inaugurado em janeiro. Agora, o Vegas também fechou, assim como o H2, o principal de São Paulo e do Brasil, que fechou as portas nesta sexta-feira.
"Minhas filhas estão pegando no meu pé, com esse vírus aí está se espalhando. Estou acompanhando pelo noticiário. Mas ainda está no começo, não sei de nenhum caso. Eu tomo muito cuidado com isso. A cada 10, 20 minutos estou lavando as mãos, passando álcool em gel. Cada um fazendo a sua parte, vai diminuir o contágio", conta Morcego.
"Já fui muito viciado, hoje sou mais controlado. Depois de uma certa idade, a gente não tem saúde para jogar durante muito tempo. Jogo só umas oito, nove horas do dia, talvez, e aí vou para casa descansar."
Entre tantos setores afetados pela pandemia, o do poker talvez seja um dos que sofrerão mais. Os clubes fecharam as portas e grandes eventos foram cancelados, como o BSOP (SP), o PAPT (Argentina) e o KSOP (Rio de Janeiro). Poucos operadores vão sobreviver. O blog apurou que o prejuízo estimado só pelo cancelamento do BSOP, que é a maior série de torneios da América Latina, ultrapassa um milhão de reais.
Além disso, a esmagadora maioria das pessoas que trabalha nos clubes não tem contrato de trabalho. É um enorme mercado não regulamentado e informal, em que boa parte dos pagamentos são feitos através das chamadas caixinhas - percentuais da arrecadação do dia em um torneio ou uma mesa de cash game.
O gerente de uma casa, em condição de anonimato, contou ao blog que estava "indo trabalhar desesperado (pelo corona)" e que agora "não tem informação nenhuma se vai continuar recebendo".
"Até o início desta semana, o movimento estava normal. Só nessa semana começou a diminuir, mas ainda com a presença de muitos idosos. A palavra que me vem na cabeça é irresponsabilidade. Acho que esse pessoal só vai parar quando morrer algum parente. Ou quando eles mesmos morrerem", contou.
Um senhor de 90 anos de idade muda três vezes de mesa em uma só noite. Encosta em mesa, em cartas, em fichas - que passaram a ser higienizados nas últimas semanas nos principais clubes, o que diminui a chance, mas passa longe de evitar o contágio. Ele é médico, os filhos também. Ainda assim, continua. E vai continuar jogando em casa a partir de agora, junto com o amigo de 40 anos de baralho, Morceguinho.
"Uma das coisas mais legais no poker é a diversidade. Não interessa se você é homem, mulher, jovem ou mais velho, universitário ou aposentado. Ele permite que as pessoas pratiquem um esporte em alto nível colocando seu raciocínio lógico para funcionar. Por outro lado, num momento como esse, os espaços de poker acabam recebendo pessoas mais velhas que estão dentro da faixa de maior risco. A gente passa por um processo de orientação, tenta conversar com aqueles que parecem não aceitar ou não estão informados corretamente. Mas como influenciar na individualidade de cada pessoa na hora de tomar essa decisão?", fala Uélton Lima, presidente da Confederação Brasileira de Texas Hold'em, a modalidade mais popular do poker, e também um dos sócios do clube H2.
Eu questiono Lima se os clubes, pela característica de contato do jogo, demoraram mais do que o aconselhável para fecharem.
"Essa pergunta serviria para qualquer comércio. Quando você se norteia pela orientação dos órgãos competentes, eles não estão levando em consideração só a questão da saúde, que é a mais importante nesse momento, mas também o lado econômico e social. As coisas têm que ser feitas de forma gradativa e que façam sentido, porque uma grave crise econômica pode matar mais do que a própria doença. No nosso caso, são centenas de funcionários, milhares de famílias, não é tão simples."
Em grupos de WhatsApp dos clubes de São Paulo, o debate foi intenso nos últimos dias sobre o que fazer, como proceder. Muitos jogadores defendendo o fechamento geral das casas, mas outros clientes argumentando que as medidas eram exageradas e os clubes não deveriam ser pautados pela "histeria da mídia".
Até o domingo passado, as duas casas principais, H2 e Vegas, continuaram lotadas, com aglomeração e ambiente fechado. Nesta semana, o número de jogadores caiu. Foram cancelados os torneios, que geram mais aglomeração. E, agora, fechadas as portas.
O mercado de poker online é fortíssimo no Brasil, através de aplicativos como PPPoker, UPoker e o mais conhecido de todos os sites, PokerStars. O volume de jogo deve aumentar bastante neste setor nas próximas semanas.
"Eu não tenho interesse para online", conta Morcego. "Não substitui a interação. O poker requer muita atenção, habilidade com a mente, tem que saber a hora certa de blefar, observar as pessoas, memorizar tudo isso para conhecer o adversário. É uma coisa fantástica e exercita nossa mente. As pessoas de mais idade não estão acostumadas com online, habituadas a ficar no celular, no computador. Gente mais velha, da nossa idade, já não tem tanto interesse."
"Tenho hipertensão, tenho diabetes. Mas eu cuido, está sob controle. Não desafio uma coisa que é invisível, é uma guerra mundial invisível. Tomo todo o cuidado, tem que obedecer. Mas está muito no começo. Ainda não está alarmante para parar".
O governador de Nevada, Estado onde fica Las Vegas, a capital mundial do jogo, ordenou há dois dias o fechamento de todos os cassinos. É a primeira vez desde o assassinato de JF Kennedy, em 1963, que Las Vegas para. Mas, pelo jeito, lá ou aqui, com ou sem corona, o jogo vai continuar.
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