Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Bem-vindos à espanholização do futebol brasileiro!
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Lá se vão pouco mais de 10 anos desde uma não tão silenciosa revolução no futebol brasileiro. Foram vários movimentos interligados e ao mesmo tempo: disputa pelo poder no Clube dos 13 e posterior implosão, disputa por modelos de negociação de direitos de TV (Globo e aliados de um lado, alguns clubes do outro), definição e construção de estádios para a Copa do Mundo de 2014, investigações internacionais que afetavam Ricardo Teixeira e outros. No meio de tudo isso, na busca por apoios aqui e ali, entraram poder público (nas questões relacionadas à Copa), a unificação de títulos brasileiros e até a questão da Taça das Bolinhas. São todos ingredientes de uma mesma torta, e ela não é das mais digestivas.
Ali, começou a ser desenhada uma nova relação de forças entre os clubes grandes do Brasil. Uma relação de forças que já havia sido afetada pela chegada dos pontos corridos, desde 2003. E que ganhou novos contornos a partir de alguns anos atrás, com ampliação da Libertadores e regulamento da Copa do Brasil priorizando os times que já estavam na competição internacional.
Alguns de nós, jornalistas, avisávamos. O Brasil caminhava rumo à espanholização. Naqueles anos, Real Madrid e Barcelona exerciam um domínio no futebol espanhol que nunca havia sido tão acentuado. Ganhavam todos os jogos de goleada, batiam recordes de pontos, não tinha nem graça ver jogos de La Liga.
O nível do futebol brasileiro já foi para as cucuias faz tempo. O que temos de melhor aqui é a competitividade. Ou seja, um campeonato e uma Copa nacionais que nunca foram dominados por algum time por um longo período de tempo. Equilíbrio de forças que fazia ser impossível prever o resultado final. Qual era o risco? Perderemos este equilíbrio.
Imaginava-se que Flamengo e Corinthians seriam os grandes dominadores.
O Flamengo, por ser a maior torcida do Brasil, um time de forte penetração nacional e por ser beneficiado por um grande acordo bilateral de venda de direitos. Como ouvimos por décadas, "no dia que o Flamengo se organizar...".
O Corinthians, naquele momento, parecia estar se transformando na maior força do Brasil. Deu estabilidade para os técnicos, ganhou Brasileiro, Libertadores, Mundial e um estádio! O tal estádio que nunca havia tido. E, claro, como clube mais popular do mercado mais poderoso, tinha um super contrato de venda de direitos, negociaria naming rights disso, daquilo, enfim.
Os outros todos ficariam para trás.
Houve apenas um erro de leitura em relação a quais seriam os protagonistas. O Flamengo, de fato, aproveitou o dinheiro jorrando, encontrou gestores capazes de equacionar dívidas, organizar as finanças do clube e modernizá-lo. Agora, exerce o domínio que muitos temiam.
Mas, em São Paulo, houve uma substituição. Não era o Corinthians, era o Palmeiras. O estádio foi a questão principal. Com a implosão do sistema político como conhecíamos, o estádio de Itaquera virou um pepino dos grandes para o Corinthians. Enquanto isso, o Palmeiras fez o melhor acordo possível, conseguiu fazer uma arena nova e ainda ganhou o apoio de seus torcedores, que entenderam a necessidade de pagar (caro) o preço de um clube ganhador.
O São Paulo, que se autodenominava soberano, ficou a ver navios. Foi o grande perdedor das quedas de braço que relatei no primeiro parágrafo e ainda viu seu estádio, antes o único da cidade para eventos e grandes jogos (inclusive dos outros clubes) virar algo mais parecido com um elefante cinza.
Veja o que aconteceu com Flamengo e Palmeiras nos últimos cinco anos, com olhar especial para os últimos três.
FLAMENGO
2020 - campeão brasileiro, 4as Copa, 8as Libertadores
2019 - campeão brasileiro, 4as Copa, campeão Libertadores
2018 - vice brasileiro, semi Copa, 8as Libertadores
2017 - sexto no Brasileiro, vice Copa, primeira fase Libertadores, vice Sul-Americana
2016 - terceiro no Brasileiro, segunda fase Copa, não jogou Libertadores
PALMEIRAS
2020 - sétimo no Brasileiro, campeão Copa, campeão Libertadores
2019 - terceiro no brasileiro, 4as Copa, 4as Libertadores
2018 - campeão brasileiro, semi Copa, semi Libertadores
2017 - vice brasileiro, 4as Copa, 8as Libertadores
2016 - campeão brasileiro, 4as Copa, primeira fase Libertadores
De quebra, o Flamengo ganhou três dos últimos quatro Estaduais do Rio, e o Palmeiras foi campeão paulista em 2020, quebrando um jejum de 12 anos.
O recorde de participações consecutivas em Libertadores é do São Paulo, com sete (entre 2004 e 2010). Palmeiras e Grêmio já vão para a sexta consecutiva em 2021. O Flamengo, para a quinta. Antes dos pontos corridos e da ampliação da Libertadores, o máximo de vezes que um clube brasileiro havia conseguido era jogar o torneio quatro vezes seguidas.
Palmeiras, São Paulo e Grêmio chegam à 21a presença em Libertadores. O Flamengo vem logo atrás com 17 e, em 2022, deve deixar o Cruzeiro para trás (os mineiros também têm 17, mas estão na Série B). As distâncias só se ampliam.
O Grêmio é o único que consegue acompanhar o ritmo de Flamengo e Palmeiras em termos de presenças consecutivas na Libertadores. Foi campeão em 17, semifinalista em 18 e 19, quadri em 2020. Na Copa do Brasil, foi campeão em 16, semifinalista em 19, vice em 20. Mas no Brasileiro, neste período, nunca conseguiu ficar entre os três primeiros e efetivamente disputar o título. A presença do Grêmio nas fases agudas das Copas têm muito mais a ver com a continuidade esportiva - é o único clube brasileiro com o mesmo técnico desde 2016.
Imaginem quando Flamengo e Palmeiras tiverem também a continuidade esportiva que São Paulo (com Muricy), Corinthians (com Mano e Tite) e Grêmio (com Renato) tiveram?
É impossível que outros clubes brasileiros ganhem campeonatos? Claro que não. Até porque, exceto o Brasileirão, o resto é tudo mata-mata. Em mata-mata, surpresas sempre acontecem. O que é impossível imaginar é um Brasileirão sem Flamengo e Palmeiras entre os quatro primeiros (salvo situação como a deste ano, com calendário mais apertado ainda e o Palmeiras em duas finais).
O Atlético Mineiro está recebendo uma grande injeção de dinheiro por parte de mecenas (formato parecido ao Palmeiras-Parmalat ou Fluminense-Unimed, não sabemos se haverá legado ou falência depois disso); Grêmio e Inter se retroalimentam, o que é bom, e tentam desenhar projeto esportivo com as finanças em dia; o São Paulo recebe muito dinheiro, tem estrutura e pode fazer frente a Flamengo e Palmeiras quando sair da fila e tirar esse fardo das costas; e o Corinthians, claro, é outro que pode ganhar protagonismo quando (se) equacionar os problemas financeiros.
O Brasil tem muitas camisas pesadas, clubes tradicionais e vencedores. As coisas podem mudar. Na Espanha mesmo, o domínio brutal de Barcelona e Real Madrid já não é o mesmo. Mudaram as regras de negociação de direitos, o abismo diminuiu, o Atlético entrou na dança - porque se organizou e também tem muito dinheiro entrando.
Hoje, para alguém desafiar Flamengo e Palmeiras, vai ser preciso se organizar muito bem financeira e esportivamente (com departamentos autônomos, investimento em maquinário e pessoal, intercâmbio, estrutura física, etc). Foi-se o tempo da má gestão e dos cartolas caricatos.
É lógico que o próprio Flamengo e o próprio Palmeiras podem viver guerras políticas internas que desafiem os projetos de sucesso. É claro que não podemos superestimar a capacidade de dirigentes brasileiros (vide a falta de coesão nas decisões dos dois próprios clubes em relação aos treinadores escolhidos em 2019 e 2020). É lógico que no Brasil as coisas podem tomar outro rumo em um estalar de dedos.
Mas com a distribuição de dinheiro atual e os formatos dos torneios, o rumo, hoje, é inegavelmente o da espanholização. Escolhemos a elitização. Nosso futebol já perdeu uma grande virtude, a abrangência, e está perdendo outra, a competitividade. Está virando coisa de dois. Flamengo e Palmeiras entram em qualquer campeonato como favoritos destacados. Os outros que se virem para correr atrás.
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