Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Gabigol, Flamengo e os tapas na cara de uma sociedade desgovernada
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Gabriel Barbosa esteve em um cassino clandestino, "jantando" com amigos de forma clandestina, aglomerando-se de forma clandestina em um lugar fechado e sem ventilação. Os problemas disso tudo não exigem muitas palavras, são autoexplicativos.
Mas aí, para a surpresa de zero pessoas, Gabriel se reapresentou hoje no Flamengo e treinou normalmente com os companheiros. Como se não estivéssemos em uma pandemia. Como se ele não pudesse neste exato momento estar contaminado e transmitindo para colegas e funcionários de clube. Como se o Flamengo já não tivesse perdido o massagista Jorginho para o Covid.
Que diabos custava deixar o Gabigol em isolamento de 10 dias? (Se ele seguir assintomático, é um período aceitável de quarentena). Será que as pessoas não têm cérebro? Porque coração já sabemos faz tempo que eles não têm. Empatia nenhuma com as famílias dos quase 300 mil mortos no Brasil, também não têm. Esses caras forçaram a volta do futebol e foram jogar ao lado de um hospital de campanha no Maracanã, afinal.
A mesma crítica serve para Jô, Otero e o Corinthians, sem dúvidas. Como os caras saem de um ambiente de trabalho em que há um surto de Covid ativo e colocam pessoas em risco em um resort? E como, depois, voltam ao trabalho sem qualquer tipo de isolamento por uma semana?
Aliás, o médico do Corinthians acaba de deixar o clube, pois queria mais tempo de afastamento para quem apresentasse sintomas.
Sabem como funciona na NBA? É assim: qualquer pessoa que testa positivo precisa ficar afastada por 10 dias, inclusive dos treinos. Quem tem sintomas, só volta ao trabalho 10 dias depois do último dia de sintoma. Se um time aparece com surto, os jogos são cancelados e movidos para outras datas.
E no Brasil? Bastam os tais 10 dias. Se o cidadão estiver com febre no nono dia de Covid, não tem problema, volta no décimo-primeiro aos treinos e aos jogos. Soa absurso, né? E é. É um absurdo completo. Um protocolo falho, para inglês ver. E o calendário é o mais apertado possível, então não há margem para modificações.
Será que a turma do Palmeiras, alguns no México, outros em Fortaleza, todos entrando em aviões e hotéis, irão cumprir uma quarentena de 7, 10, 14 dias antes de entrarem em ambientes fechados no clube e lidarem com profissionais de outras áreas?
Estou citando os casos de Palmeiras e Corinthians até para não ficarem aqui com aquela idiotice de "clubismo" ("você só fala do Flamengo e passa pano para outros!", é assim que eles costumam ladrar).
Os casos do Flamengo acabaram sendo mais escancarados e menos, digamos, "envergonhados" nos últimos tempos. Foi o clube que mais pressionou pela volta do futebol, pela volta do público aos estádios e, agora, tem um caso de jogador encontrado em uma aglomeração clandestina e, mesmo assim, trata a situação como se tivesse sido corriqueira e normal. Nada de multa, nada de pito, nada de afastamento.
Agora é a vez de a Federação Paulista de Futebol simplesmente passar por cima da decisão do governo do Estado de parar as competições, criar a "caravana da Covid" e mandar o jogo entre São Bento e Palmeiras para Belo Horizonte.
Isso tudo é retrato de um país desgovernado, como um ônibus sem freios ladeira abaixo em uma estrada serrana, com os passageiros se acotovelando e gritando uns com os outros. Não tem como dar certo. O único local de destino possível é a ribanceira.
Nós não temos nenhuma gestão, nenhum controle da pandemia. Somos o país que pior lida com a situação desde exatamente um ano, que é quando a coisa explodiu globalmente. E o futebol, através da CBF, seus dirigentes e atores principais, tem a cara de pau de se considerar acima disso, melhor que isso, diferente disso.
Não é. É igualzinho. É a mesma porcaria, a mesma sorte de irresponsáveis, que colocam seus interesses ideológicos e/ou financeiros acima de tudo e fazem o possível e o impossível para confundir a sociedade, com mentiras e discursos fantasiosos.
Parte da sociedade, é verdade, sofre mais do que outra com tudo o que está acontecendo. É uma vida tão dura, marcada por violência, desemprego, perrengues, desabamentos, desalojamentos, racismo, humilhações, desnutrição, outras doenças que é natural que uma doença como a Covid não "assuste". É apenas mais uma bala a ser desviada.
Que tipo de informação está sendo transmitida para essas pessoas? Quem sabe como agir, caso tenha algum sintoma da Covid? Que tipo de protocolo seguir para ajudar a família e amigos da comunidade a não se contaminarem?
Do outro lado, temos uma imensa parte da sociedade que simplesmente nega a pandemia em nome de ganhar dinheiro com seus negócios, que precisam continuar. Neste grupo, está o futebol. Que poderia ser uma arma importantíssima de orientação para a população sobre protocolos e processos, mas que prefere ficar inserido no caos da desinformação e do egoísmo.
Clubes e jogadores de alto nível podem, sim, sobreviver se o futebol parar por um ou dois meses. O Flamengo pode sobreviver sem Gabriel Barbosa por 10 dias. E os clubes pequenos? E a massa enorme de jogadores que ganham salários mínimos? Bem, estes deveriam estar sendo subsidiados pela CBF, que tem dinheiro de sobra em caixa - dinheiro acumulado com a seleção brasileira, que deveria ser patrimônio nacional, e não privado.
Jogadores e clubes que não estão na elite deveriam estar sendo mantidos pelos donos do futebol. Assim como as pessoas que realmente precisam, as que vivem com o mínimo e na corda bamba, além dos micro empresários, que são os que dão emprego e não tem negócios milionários e capazes de sobreviver a lockdowns, deveriam estar sendo protegidos pelos órgãos governamentais brasileiros, de forma planejada e organizada.
O futebol é apenas mais uma faceta perversa de uma sociedade sem rumo, em que cada um tenta se salvar do naufrágio de forma individual e até egoísta. Somos o Titanic. Alguns tocam violinos, outros tentam se virar como podem, outros tentam ajudar, outros querem apenas um barquinho para fugir e que se dane o resto. O futebol está lá no andar de cima.
O exemplo de Gabriel e a volta dele aos treinos é apenas mais um. Outro tapa na cara de quem vê a rota trágica que estamos seguindo, outro tapa na cara de quem está cuidando de doentes e enterrando mortos, outro tapa na cara de quem teve a família destruída.
Não há vacina que dê conta de nosso fracasso como sociedade.
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