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Julio Gomes

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Superliga é um escárnio e nasceu odiada. Mas como seria a reação aqui?

O presidente Florentino Pérez, do Real Madrid e da Superliga europeia -                                 AFP
O presidente Florentino Pérez, do Real Madrid e da Superliga europeia Imagem: AFP

19/04/2021 04h00

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Imaginem um novo Brasileirão, à la NBA. Quem estará nele? Os quatro grandes de São Paulo, os quatro do Rio, os dois do Sul, os dois de Minas e, vamos lá, acrescentamos Athletico-PR, Bahia e Sport. Seriam 15. Estes 15 nunca seriam rebaixados. Para o campeonato ter 20 times, a cada edição seriam convidados outros cinco clubes do Brasil, "de acordo com critérios técnicos" - ou seja, estes cinco não teriam exatamente uma grande possibilidade de planejamento financeiro, pois o convite depende dos 15 "fundadores". Todos receberiam muita grana das TVs e haveria uma forte comercialização, pois seria o campeonato mais interessante. Eles se livram da CBF e podem gerir a Liga como quiserem.

Gostaram da ideia?

Eu não. Eu odeio a ideia. Por que? Porque não posso tratar o futebol ou meu time de futebol como um mundo à parte. E, no mundo em que vivo, considero a concentração de riqueza a maior das tragédias, a que gera todas as outras. No mundo em que vivo, um punhado de poderosos faz as leis, ganha o grosso dinheiro, distribui migalhas, arrota "meritocracia" e perpetua a roda perversa enquanto a multidão que está fora do clubinho se debate no mar infestado de tubarões tentando sobreviver.

Eu nunca apoiaria a criação de uma liga destas no Brasil. Ou na América do Sul. Ou na Europa. E em 1987, quando fizeram algo parecido, a tal Copa União, eu diria a mesma coisa - se não tivesse 8 anos e mal soubesse escrever. É uma questão conceitual, de ponto de vista sobre o mundo.

E assim chegamos à Europa, que amanhece nesta segunda-feira enlouquecida pelo anúncio da criação da Superliga. O futebol, como todos conhecemos, está prestes a acabar.

Um grupelho de 12 clubes europeus, 12 dos mais ricos (por enquanto, Bayern e PSG ficaram de fora), anunciou a criação de um campeonato entre eles.

Eles não explicam se jogariam ou não a Champions League, mas parece óbvio que a ideia é não disputar mais a competição da Uefa. Eles não querem mais dividir dinheiro e jogar contra times da Bélgica ou de Portugal ou da Holanda ou da Suíça ou da Noruega. Querem jogar só entre eles. E, como são muito bonzinhos, prometem continuar jogando os campeonatos nacionais, para ajudar os pobretões de seus respectivos países.

Quais são os 12 clubes? Os três maiores da Espanha, os três maiores da Itália e um grupo de seis ingleses. O presidente do clubinho não poderia ser outro: Florentino Pérez, empreiteiro, também presidente do Real Madrid, o homem que há 20 anos fez do clube mais vencedor da Europa também o mais rico. Parabéns para ele. Mas eles querem mais. Eles sempre querem mais.

O grande desafio era trazer os ingleses para o barco, pois o grosso do dinheiro está lá. Em 1998, quando a ideia de criação da Superliga ganhou corpo, seriam apenas três ingleses: Liverpool, Manchester United e Arsenal. O que achariam da Superliga, naquela época, os hoje ricaços Chelsea (com dinheiro esquisito russo) e Manchester City (com dinheiro esquisito de Abu Dhabi)? E o Tottenham?

Pois é. Achariam o mesmo que hoje estão achando Sevilla, Valencia, Porto, Benfica, Ajax, PSV, Lyon, Marselha, Roma, Napoli...

Achariam um absurdo. Uma sacanagem. Mas, hoje, não. Porque hoje os clubes ingleses, assim como outros, têm donos. E é isso o que dá ter donos que não possuem qualquer conexão com a história do clube e do futebol local. São apenas investidores querendo fazer dinheiro no negócio futebol.

Eles não querem saber o que será de outros grandes, médios e pequenos clubes de cada um destes países. Eles não estão muito preocupados com as raízes destes clubes e de como o futebol move pequenas, médias e grandes cidades europeias. Eles estão preocupados com a grana, com o business. E é só.

A não entrada de alemães, por enquanto, mostra que há algum tipo de dilema rolando por lá. Na Alemanha, os sócios continuam sendo donos dos clubes. Isso é estatutário. E a Alemanha, o país mais desenvolvido da Europa economicamente, segue sendo ao mesmo tempo o mais solidário. O pós-guerra realmente deu certo por lá. Veremos as cenas dos próximos capítulos em relação ao que fará o Bayern de Munique.

A criação da Superliga é um escárnio. E a enésima prova de como o capitalismo é um modo de vida cruel quando o capital manda sem amarras ou controle.

Quem pode controlar os "rebeldes"? Bem, a partir de hoje saberemos se alguém pode, de fato, controlá-los, ou se eles simplesmente se transformaram em grandes demais para isso.

A Fifa se declara contrária à Superliga e pode considerar jogadores destas equipes impedidos de defender as seleções. Pode parecer pouco, mas não é. Será que brasileiros, argentinos, outros sul-americanos, africanos iriam abrir mão de defender seus países?

A Uefa, lógico, é a grande atingida. Juntamente com as federações locais, promete impedir que os clubes rebeldes disputem competições nacionais, europeias e mundiais. É que não sei se isso importa, pois, no fim, é isso o que estes clubes querem. Jogar só entre eles.

Jurgen Klopp, como sempre preciso, disse em entrevista dois anos atrás ser totalmente contrário à criação de uma Superliga. "A Champions já é uma Superliga. Por que quero ver Liverpool e Real Madrid jogarem todos os anos?".

Ele vai direto ao ponto. A ganância cega. Com o passar do tempo, a Superliga também se transformaria em uma competição óbvia, como são hoje as ligas nacionais. Também haverá clubes dominantes. E aí? Daqui a 20 anos, uns seis destes melhores que os outros vão sair da Superliga e ficar jogando hexagonais entre eles na China e no Japão, para fazer dinheiro?

O esporte tem uma magia que essa turma não entende. E na Europa, mais do que aqui, eles nunca conseguirão fazer a massa enorme de pessoas que torcem por outros clubes ou que vivem em cidades pequenas colocar o clube grande e poderoso em primeiro lugar na preferência. Eles serão boicotados. Não à toa, a reação foi brutal. Uma reação que não combina exatamente com a frase dita por Florentino Pérez ("estamos fazendo o que os torcedores querem"). Não, não querem.

A mídia e público brasileiros, pelo que vejo, também rechaçam a criação da Superliga europeia. Mas tenho sérias dúvidas se rechaçariam a ideia que dei lá no primeiro parágrafo - que, aliás, já é algo bem perto da realidade desde a criação do Brasileirão de pontos corridos e da negociação individual (e não coletiva) de direitos de TV.

Bom seria se sempre mantivéssemos a distância emocional para perceber as coisas. Quando estamos envolvidos, a nitidez se perde em meio aos interesses e preferências. À distância, estamos todos vendo o absurdo que o grupelho de ricos europeus está querendo fazer.

A guerra do futebol está só começando.