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Julio Gomes

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Atenção, Abel! Inspirar e sorrir valem mais do que um cala-boca ao vizinho

Abel Ferreira, técnico do Palmeiras, após a classificação à final da Libertadores, diante do Galo - Staff Images / CONMEBOL
Abel Ferreira, técnico do Palmeiras, após a classificação à final da Libertadores, diante do Galo Imagem: Staff Images / CONMEBOL

29/09/2021 04h00

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Abel Ferreira é um cara importante para nossa sociedade no momento. Nem falo de futebol, ainda que sirva também para o futebol. Abel mostra que foco, dedicação, disciplina, resiliência, pensamento estratégico e planejamento são virtudes básicas e que deveriam estar presentes em tudo o que fazemos. Esta não é uma realidade presente nas várias camadas que formam essa coisa complexa chamada "sociedade brasileira".

Nós não somos só defeitos, porém. Portugueses e europeus tampouco são só virtudes. Abel, por exemplo, tem um defeito que é comum a brasileiros e portugueses e que é dos piores possíveis: ganhar pensando no outro. A primeira coisa que lhe vem à alma não é a felicidade da vitória e, sim, a raiva. A palavra que melhor resume isso em nosso dia-a-dia é: "chupa". Palavra feia, com conotação homofóbica, mas este não é o tema. Estou falando de realidade.

"Chupa" é o que o mais lemos nos grupos de WhatsApp. E o que mais ouvimos no campo, ao escutar a celebração palmeirense no campo. "Chupa" é a primeira coisa que um torcedor fala, quando seu time ganha. O "chupa" é direcionado a alguém, ou a um suposto alguém, que estava torcendo contra ou que "merecia" ser "punido" com aquele resultado. O "chupa" é um contra ataque. Não é a alegria plena.

Abel usou, após o jogo contra o Atlético, a figura de um vizinho imaginário para justificar a explosão de raiva após a vitória. Obviamente, todos sabemos que o vizinho do Abel não existe. O vizinho é a figura imaginária que representa todos os que criticam o trabalho dele. Para conhecer o vizinho de Abel, basta ver qualquer mesa redonda de futebol. Não há vizinho, há analistas, outros treinadores ou simplesmente torcedores, do Palmeiras ou não, que criticam o estilo dos times dele. E ele não gosta. Mandou um "cala-boca" geral.

Eu entendo. Deve ser duro mesmo para quem sabe muito de futebol ouvir a quantidade de baboseiras que se fala. Mas isso faz parte deste negócio chamado futebol, é preciso conviver, tentar separar joio do trigo. É no debate que Abel agrega, não mandando as pessoas calarem a boca.

Abel Ferreira é muito, muito, muito parecido com José Mourinho. Não é à toa que tantas referências foram feitas por ele a Mou. O estilo é idêntico. Na maneira de encarar futebol, de preparar jogos, de atenção aos detalhes, de relação com jogadores ("com eles à morte!"), de disciplina e também no uso dos meios de comunicação para pressionar arbitragens, mandar recados a críticos, etc. Eu acompanhei de perto o trabalho de Mourinho, participei de um sem número de entrevistas coletivas dele e garanto: Abel se inspira e copia o mais famoso dos treinadores portugueses.

Mourinho impactou o futebol europeu, já quase duas décadas atrás, do mesmo modo que Abel está fazendo agora por aqui. Porque mesmo a Europa não conhecia tal nível de atenção aos detalhes. Mas Mourinho foi decaindo. Porque outros passaram a fazer o mesmo em termos de preparação e busca de antídotos, mas foram além em vários outros aspectos do jogo, especialmente os relacionados à construção.

Podemos dizer que o impacto de Mourinho durou mais ou menos uns 10 anos, de 2003 a 2013, e depois disso perdeu importância.

Digo que Abel agrega pouco ao futebol em termos táticos. Não tiro os méritos de quem analisa profundamente o adversário e encontra os mecanismos para anulá-lo. Mas, para isso, muito mais do que grandes sofisticações táticas, o que é necessário é convencer os jogadores de que esta será a melhor maneira de ganhar. Bombardeá-los com as informações necessárias. E, se o adversário for mesmo melhor ou do mesmo nível, será necessário também contar com a sorte ou com erros.

O Palmeiras teve sorte e contou com erros quando Hulk desperdiça um pênalti, Vargas falha o 2 a 0 cara a cara e Nathan Silva atua de forma bisonha no gol de empate, no Mineirão. Isso tudo foi planejado por Abel? Duvido.

Mas não tiro o mérito por estabelecer um plano para a semifinal - que certamente teria caminhos diferentes em função de situações diferentes que se apresentassem - e trabalhar para que seus jogadores seguissem tal plano. A imagem de Abel após o gol do Atlético, pedindo calma e foco ao time, é esclarecedora. Aí entramos no campo da disciplina e da mentalidade.

E, nisso, estou 100% com Abel. Não sou teu vizinho, Abel, mas sou também português. Tenho um Cartão Cidadão igualzinho ao teu. Tenho NIF, igualzinho a você. Sou filho de português, torcedor da Portuguesa e já passei mais tempo em Portugal e na Europa do que você no Brasil. Portanto, sinto-me tranquilo para ter essa conversa de igual para igual.

Abel generaliza, mas é impossível ter essa conversa sem generalizar. Ele tem toda a razão quando aponta que falta aos brasileiros certa disciplina, a resiliência, a mentalidade de renúncia. Somos muito mais emocionais do que racionais. Somos melindrados. Não gostamos nem temos cultura de feedback. Tentamos compensar a falta de capacidade dando jeitinhos e adoramos atalhos. Ele será taxado por "preconceituoso" pelo que disse. Não por mim. É, de fato, um terreno perigoso quando generalizamos "povos", mas estes debates são necessários.

Creio que Abel toca o dedo na ferida quando expõe suas impressões - como cidadão, não apenas técnico de futebol. Podemos apenas resumir isso a arrogância ou falta de humildade. Ou podemos ouvir com atenção e tentar melhorar, evoluir. Não apenas no futebol, mas como sociedade.

Como português, porém, também falo com tranquilidade que o "chupa", o ganhar e se lembrar primeiro de quem torce contra e só depois de quem torce a favor, é uma coisa que se encontra muito mais na sociedade portuguesa do que em outras europeias. Ninguém é perfeito. Todos podemos melhorar.

Mas voltando ao futebol. Quando ele joga na cara que estudou dez anos para ser técnico de futebol, podemos perguntar por aí se nossos treinadores passam pelo mesmo processo. É claro que não. Gostamos de atalhos e de trabalhar de forma empírica, não acadêmica. Ele tem razão ao expor este fato.

Só que estudando ou não estudando futebol, estudando mais ou menos, conhecendo mais ou menos, todos temos vivência. E sabemos que o futebol é um jogo em que se pode ganhar de várias maneiras, não apenas com um livro embaixo do braço. Sabemos que há estilos diferentes, individuais e coletivos. E temos direito de gostar mais disso ou daquilo. Futebol é, também, arte. Futebol é uma expressão cultural, é algo subjetivo, não meramente objetivo.

Pode ser objetivo para quem trabalha para ganhar jogos, como faz Abel, mas ele não é visto, consumido, praticado somente por profissionais. Se não fosse a subjetividade do futebol, Abel não teria o salário que tem.

Acredito que Abel, com sua meticulosidade, deixe seus times mais perto das vitórias do que de derrotas - bem, os resultados mostram isso. Mas também acredito que seu estilo e visão de como o futebol deva ser jogado afastem mais do que aproximem os times dele de algo que é difícil de medir: o gosto de ver futebol, sentir futebol, se deixar envolver pelo futebol. A tal subjetividade.

Portanto, seu estilo não é incriticável. Nenhum estilo é. Não são 5, 10 ou 30 anos de estudos que farão com que uma visão sobre futebol seja infalível ou incriticável.

O estilo de Abel não lhe dará vida longa na Europa. Se nem Mourinho tem mais tanto espaço, por que uma "cópia" terá? Para o futebol europeu, ele terá de evoluir e encontrar outras soluções em relação a construção de jogo. A disciplina, atenção aos detalhes, mentalidade, etc, etc, etc, podem ser diferenciais por aqui, mas são commodities lá.

Para o consumo interno, ele é fera. Repito: pode não agregar tanto taticamente, mas agrega demais na forma de trabalhar e encarar o esporte. Espero, de verdade, que pessoas dentro do Palmeiras possam absorver isso - coisa que não parece ter acontecido após a passagem de Jorge Jesus pelo Flamengo. Espero que profissionais brasileiros sejam inspirados pelos métodos de Abel. E espero que a sociedade brasileira, de uma forma geral, seja inspirada pela maneira como ele trata a profissão dele.

Mas ele não precisa xingar o vizinho no campo. Não precisa dizer que são filhos da p... (que foi o que ele fez no gramado) os que o criticam. Porque aí ele se rebaixa. Ele desce todos os degraus que subiu a duras penas de uma vez só. Ele vira apenas um cara igual aos que ele critica. Quando ele manda o vizinho se calar, ele está interditando o debate, e é no debate e na troca de experiências que Abel é tão valioso.

As vitórias precisam de mais amor e alegria, de menos raiva e sentimento de vingança. Uma dica que fica aos brasileiros. E aos portugueses também.