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Julio Gomes

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Ciao, carissimo Fratellone. O adeus de Pasquale a Silvio Lancellotti

Silvio Lancellotti, jornalista esportivo - Arquivo Folhapress
Silvio Lancellotti, jornalista esportivo Imagem: Arquivo Folhapress

13/09/2022 21h14

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Silvio Lancellotti se foi. Era um grande cara, que inspirou, ensinou, lutou, escreveu, falou, cozinhou, construiu. Como Jô Soares, outro enorme que nos deixou há pouco, Silvio era uma dessas multipersonas, multigeniais. 

Todos nós somos construções. O livro de nossas vidas vai sendo escrito quase que conjuntamente com as pessoas que vemos, ouvimos, com quem convivemos, os momentos bons e ruins. No livro da minha vida, está Silvio Lancellotti. Não, nunca fui próximo dele. Ele é que foi próximo a mim, sem nem saber. Escrevi uma homenagem aqui no UOL dois anos atrás, quando, pela primeira vez, comentei um jogo de Campeonato Italiano na TV. Em um dia tão triste como hoje, busco conforto no fato de tê-lo conseguido homenagear em vida. A última aparição pública foi comigo e Jamil Chade na edição número 1 do Podcast Futebol Sem Fronteiras, em maio do ano passado.

A partir daí, passamos a trocar mensagens. Meu querido amigo Professor Pasquale, o professor de todos nós, deu a ideia de irmos visitá-lo. E fomos. "Ciao, Silvio. Come stai?!" Foi assim que cumprimentei um dos grandes caras que conheci. Se resolvi aprender italiano na adolescência foi, também, por causa dele. Silvio estava no alto da escada da casa onde viveu seus últimos dias, na zona sul de São Paulo. Não podia subir e descer quando quisesse, a capacidade de se locomover já era bastante precária. A casa era recheada de fotos, memorabilia, livros e livros e livros. Ele escreveu muitos.

Silvio Lancellotti conhecia muito sobre muita coisa. Ele era praticamente um ET na idiocracia que se instala em nosso país. Arquitetura, gastronomia, comunicação, televisão, futebol, escolha o tema. Silvio foi um dos criadores da Veja, estudou em Stanford, escreveu para os principais jornais e revistas do Brasil, passou pelos principais canais de televisão. Mesmo que o corpo lhe fosse traindo, especialmente após um acidente grave de carro em 2016, mostrou-se lúcido e brilhante até o último dia. E morreu trabalhando, há dez anos escrevendo para o Portal R7 (que merece todos os elogios do mundo por ter dado o espaço e ajuda financeira essencial a Silvio). 

Meu irmão, Flavio Gomes, outro gênio, meu maior inspirador, resumiu de forma perfeita: "Silvio morreu de tanto viver". Certamente nosso fratello será homenageado por muitos nos próximos dias, pois tantos foram os que cruzaram o caminho e aprenderam com ele nos últimos 50 e tantos anos. Mas aqui, neste espaço, quem renderá homenagem não serei eu. O texto abaixo é de um dos grandes brasileiros vivos, "grandisimo amico" de Silvio. É de apertar o coração, mas de encher a alma. 

POR PASQUALE CIPRO NETO

Ciao, carissimo Fratellone

Num programa de televisão, lá pelos idos de 1990 e alguma coisa, não sei por que cargas d'água dei de dizer que o nosso caríssimo Silvio Lancellotti tinha inventado o adjetivo "nederlandês" para se referir à Holanda. O arrependimento veio imediatamente, mas era tarde demais. Eu não tinha nada que encher a paciência dele. Programa transmitido, Silvio me procurou para agradecer-me pela informação. Pensei que fosse levar uma bronca pelo meu atrevimento. Quase onze anos mais velho, Silvio sempre me tratou com muita reverência e afeto, apesar de eu sempre fazer questão de dizer-lhe que o Mestre era ele.  

Dono de múltiplos saberes, história viva do nosso jornalismo, homem fino e erudito, Lancellotti deixou a sua marca em todas as atividades que exerceu. Um texto dele (sobre gastronomia, esporte, cultura, música, arte...) era sempre uma aula, uma aula magna, o que também se pode dizer a respeito dos livros que deixou e das suas inesquecíveis participações nas transmissões do futebol italiano nas manhãs de domingo.     

Mas a sua maior virtude era a generosidade, o companheirismo, a "fratellanza". Um dia tive uma rusga com meu irmão, de quem Silvio também era amigo. Como se fora um "fratello maggiore", Silvio interveio e me pediu que a paz fosse restabelecida. Quando isso ocorreu, ele exultou e me matou de emoção com palavras inesquecíveis.  

Há algum tempo, o nosso Julio Gomes e eu estivemos na casa dele. Foi uma tarde memorável. Ainda estávamos sob o jugo da pandemia, mas, portador de uma síndrome que ele julgava altamente (e paradoxalmente) protetora, o invencível Silvio intimou-nos: "Sou siciliano! Isso não me pega!". Mensagem do Julinho nesse dia: "13h30min te pego, carcamano". E lá fomos nós, devidamente mascarados. Disse-me o Julio ontem: "Poderíamos ter feito mais uma. Mas poderíamos não ter feito nenhuma. Em pandemia ainda. Ainda bem que fizemos". Ainda bem, caro Julio, ainda bem. 

Por falar em Júlio, o nosso Silvio era primo do imenso Júlio Lancellotti, outro grande brasileiro, irmão de todos os necessitados deste país.

Na minha trajetória, a presença de Silvio Lancellotti é muito grande. Uniam-nos laços de sangue, não parental, mas telúrico, já que viemos do mesmo solo, a nossa amada Itália. Nas mensagens, que trocávamos com altíssima frequência, alternávamos o idioma, e muitas vezes começávamos em um e terminávamos no outro. Na semana passada (no dia 4), ele me escreveu, acrescentando o inglês: "Home, sweet home. Saí do hospital. Inteiro.". E eu, em italiano: "Bravo! Cosa ti hanno fatto?" ("O que te fizeram?"). E ele: "(...) Saí todo furado, com hematomas...". Eu respondi, perguntei algo, ele me respondeu e... E foi a última troca de mensagens antes da internação no Hospital São Paulo, de onde ele só saiu para repousar no "camposanto", como se diz na língua da nossa outra pátria.  

Quando a embaixada dos Países Baixos publicou uma nota em que pedia à imprensa que deixasse de se referir a essa nação europeia como Holanda (nome de uma das regiões dos Países Baixos) e que também abandonasse o uso de "holandês" e passasse a empregar "neerlandês" como referência ao país, Silvio me escreveu, exultante: "Perdi o 'd', Fratellone, mas cheguei lá". Silvio se referia ao "d" do "nederlandês" que ele havia criado, certamente sob a influência do "th" de "Netherlands", nome inglês do país europeu. A partir de então, sempre que se referia aos Países Baixos em sua impecável coluna do R7, Silvio usava o adjetivo "neerlandês", devidamente seguido de uma explicação a respeito da "nova" denominação da terra dos moinhos de vento.

Assim era o nosso Silvio. Um obstinado, um rigoroso obstinado.

Já sinto muita falta do "Fratellone" (aumentativo de "fratello", que significa "irmão"), vocativo com o qual muitas vezes o querido Silvio iniciava ou terminava as mensagens que trocávamos. E sempre havia "bacioni" ("beijões", ao pé da letra) e/ou "abbraccioni" ("abrações") nessas carinhosas mensagens, mesmo naquelas em que ele me dava um pito por posições mais radicais em relação a certos temas.

Grazie mille, caro Fratellone, grazie di tutto! Bacioni e abbraccioni.