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Julio Gomes

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Caso Figo' nos leva ao marco inicial do futebol dos agentes e da elite

17/09/2022 04h00

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"O Caso Figo", documentário lançado recentemente pela Netflix, precisa ser visto. Para quem já gostava de futebol internacional, então, é imperdível. É a história de um verdadeiro marco. Para o Real Madrid, um marco óbvio, a formação do time dos "Galácticos" começava ali, com a eleição de Florentino Pérez. Mas aquele momento foi muito mais que isso, foi também uma espécie de pontapé inicial do futebol como conhecemos hoje, com protagonismo de empresários e elitização dos clubes.

Não à toa, o próprio Florentino é um dos idealizadores e líderes do projeto da Superliga, que seria o próximo passo da elitização. A elite da elite.

Quando Figo chegou ao Real Madrid, no meio do ano 2000, o vigente campeão espanhol não era o Barcelona, clube onde ele brilhava. Era o pequenino Deportivo La Coruña. Tanto o Depor quanto o Valencia encaravam de frente os gigantes do país. Na Itália, entre 2000 e 2001 foram campeãs Lazio e Roma, as únicas vezes em 30 anos que o Scudetto não ficou com Juventus, Inter ou Milan. Em Portugal, o pequeno Boavista foi campeão em 2001, o Sporting levou em 2000 e 2002 - só voltaria a quebrar o domínio de Porto e Benfica no ano passado.

São apenas alguns exemplos que mostram que as ligas europeias eram mais equilibradas e imprevisíveis. Os maiores campeões de cada país sempre foram dominantes, mas a realidade do Século XXI é muito mais dramática do que a do Século passado.

Foram vários momentos importantes. A Lei Bosman deu aos jogadores a alforria, os clubes não poderiam ser mais donos do destino dos profissionais. O Mercado Comum Europeu abriu as portas para a montagem de seleções globais. A transformação da Copa dos Campeões da Europa em Uefa Champions League foi o pontapé inicial para uma acumulação inédita de dinheiro por apenas um punhado de clubes. Já na primeira década do Século, vieram as compras de clubes por magnatas a fim de queimar dinheiro, lavar dinheiro, abater impostos e por aí vai. Depois, vieram os clubes-Estado. Mas aí já avançamos muito a fita.

O fato é que este cenário de concentração de renda gerou um incremento bizarro nos valores e, claro, na importância maior ainda dos agentes. Pessoas como Jorge Mendes são, hoje, cruciais na indústria.

"O Caso Figo" não foi a primeira grande ocasião de uma multa rescisória sendo paga de um clube para o outro, mas ele foi emblemático demais porque Figo saiu do Barça para o Real. E no ano em que seria o Bola de Ouro! O documentário mostra o papel dos intermediários, entre eles (de forma surpreendente) Paulo Futre, que possivelmente foi o jogador português mais importante entre Eusébio e Figo/Cristiano Ronaldo, pelo protagonismo que tivera no Atlético de Madrid.

Futre conta que, em dado momento, avisa Figo: Não importam os gols, os títulos. No fim, o que vale é o dinheiro no bolso. Recém-aposentado, amigo de Figo e com entrada para convencê-lo, viu naquela candidatura de Florentino Pérez e a possibilidade de transferência a chance de ganhar uma verdadeira bolada. Futre e Veiga, o agente de Figo, não estavam preocupados com o jogador, a família, a decisão esportiva. O que queriam era que o negócio acontecesse. A banda toca assim até hoje!

O documentário faz algumas licenças poéticas típicas deste formato. Parece que o "clásico del cochinillo", quando jogam uma cabeça de porco em direção a Figo no gramado do Camp Nou, foi a primeira visita dele a Barcelona - mas não, ocorreria na terceira partida, já em 2002. Outro ponto de atenção é que convém não acreditar 100% no que todos ali estão falando. O agente Santos Márquez contou nesta semana ao "El Confidencial" que ele, Figo e Florentino assinaram um pré-contrato quatro meses antes da transferência, de olho nas eleições 2001 - só que Lorenzo Sanz, então presidente do Real, resolveu adiantar o pleito e ele ocorreu em 2000 mesmo. Márquez não é sequer citado no documentário, mas ninguém apareceu para negar a entrevista dada por ele.

De qualquer maneira, o documentário triunfa em nos remeter aos tempos em que presidentes caricatos, como Sanz, dariam lugar a empresários como Florentino Pérez, que tratariam o futebol como o que é: um negócio bilionário, uma indústria de entretenimento e estrelas mundiais. Eventualmente, o mesmo aconteceria com o Barcelona. A saída de Figo foi o primeiro ato do novo presidente, Joan Gaspart, e o fracasso do dirigente "à antiga" resultaria na chegada de Joan Laporta, que colocaria o clube de volta aos trilhos.

O longa metragem triunfa em mostrar também o dilema de Figo, que parecia, na hora H, estar arrependido da decisão. E mostra muito bem também o sentimento catalão. Figo virou verbo e é, até hoje, sinônimo de "traição" em Barcelona, como explicou no Podcast Futebol Sem Fronteiras #60 o jornalista Joaquim Piera.