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Caso Vinícius Jr extrapola o racismo e reações chegam com 8 meses de atraso
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A Espanha é um país racista? Não compactuo com a afirmação. A Espanha é um país que tinha, há 17 anos, um jogador brasileiro e negro usando sua camiseta na Copa do Mundo de futebol. Que, aliás, escolheu viver por lá, na cidade de Valência. A mesma Valência em que o "caso Vinícius Júnior" explodiu de vez. Foi a gota d'água em que um copo que estava sendo enchido havia oito meses, sem que ninguém fizesse nada. Transbordou, logicamente.
O Brasil falar da Espanha é o sujo falar do mal-lavado. É claro que há racismo na Espanha e em vários lugares da velha Europa. Mas não o racismo estrutural impregnado na sociedade brasileira, em que dezenas de milhares jovens negros são assassinados anualmente, muitas vezes pelo próprio braço armado do poder público. Como seria bom se mostrássemos a mesma indignação para estes casos que estamos mostrando agora para o que acontece com um brasileiro negro em outro país!
A comparação, no entanto, é inútil no momento. É importante lutar contra o que acontece com Vinícius Jr na Espanha porque simplesmente é importante lutar contra o racismo no dia a dia, em todas as esferas, em todos os minutos. Não só porque é um brasileiro fora do país.
O caso Vini Jr extrapolou o racismo. E, sim, a culpa disso é das autoridades espanholas, começando pelas esportivas e terminando nas judiciárias. São muitas camadas e que estão, no momento, todas misturadas. Tanto que há gente tratando de modo simplista - e o "cancelamento" da Espanha é a prova disso - e tem gente, principalmente lá na Península Ibérica, que ainda não se deu conta do que está verdadeiramente ocorrendo.
Vamos lembrar como tudo começou? Porque é importante ressaltar que o início não foi em 2018, quando Vini chegou ao país. Como ele mesmo disse, é um país que o recebeu bem e, por quatro anos, não era lá que ele era pejorativamente chamado de "Neguebinha" nas redes sociais. Lá, ele cresceu, amadureceu e se fez homem.
Em setembro de 2022 está a origem. Quando um idiota racista fala, em um programa de TV (destes de baixo nível, temos vários iguais aqui), que Vini precisava respeitar os rivais, parar com as dancinhas após fazer gols e deixar de "fazer macaquices". Também já tivemos zilhões de debates sobre dancinhas e comemorações "desrespeitosas" aqui no Brasil, sem novidade. O uso do termo racista na TV fez com que algumas manifestações ocorressem na época, até por parte do Real Madrid. Mas foram tímidas.
Isso aconteceu no dia 15 de setembro. No dia 18 de setembro, jogariam Atlético de Madrid e Real Madrid, um dérbi quente, no estádio do Atlético. O Atlético, para quem não sabe, se orgulha de ter uma torcida mais "colorida" que a do "elitista" Real Madrid. Chegou a fazer peças publicitárias louvando o fato de ter sido o time escolhido por muitos imigrantes latino-americanos que chegaram à Espanha aos montes, essencialmente neste século.
A Espanha que eu conheci quando lá vivi, entre 2003 e 2009, é um país de sociedade muito plural, bastante mais avançada que a nossa em termos de igualdade de gênero, de liberdade sexual e religiosa e bastante mais avançada do que outras sociedades europeias, como a inglesa, por exemplo, em termos de ações afirmativas para imigrantes. Mas neste mesmo século 21 vivenciamos um contra-ataque de parte das sociedades que se sentem sufocadas pelas mudanças.
Não à toa, o partido de extrema-direita espanhol, que vocifera contra a imigração, chama-se VOX. É a "voz" de quem perdeu o "direito" de não querer tantos estrangeiros, negros ou morenos em volta, gays orgulhosos nas ruas, mulheres em postos altos de trabalho. Conhecem essa história? Muitas pessoas se sentiram empoderadas nos últimos anos e livres para falar ou escrever publicamente coisas que considerávamos já ultrapassadas, coisas de outros tempos. Afinal, o nazismo e o facismo destruíram a Europa no século passado. Como assim ainda haveria gente disposta e ouvir e propagar alguns daqueles conceitos bizarros? (revisitados, claro, e com a roupagem dos tempos atuais).
Naquela semana em que Vini Jr foi atacado por um idiota na TV, havia torcedores energúmenos do Atlético de Madrid do lado de fora do estádio imitando macacos, chamando Vinícius de macaco e ainda ostentando um boneco-macaco com a camisa do Real Madrid. No caminho rumo ao estádio, havia uma faixa com mensagem de ódio em um viaduto e um boneco negro pendurado, como se tivesse sido enforcado.
Este foi o exato momento em que as coisas saíram do controle e quando se misturaram o clubismo, o futebol, com algo que era e é muito maior e mais importante que o esporte. Neste exato momento, a rivalidade esportiva tinha de ter sido sumariamente ignorada. Atlético e, principalmente, o Real Madrid deveriam simplesmente não ter jogado futebol diante daquele cenário.
O dia 18 de setembro é o início de tudo. E ele teve um capítulo ainda mais nefasto no início de dezembro, quando estávamos todos de olho na Copa do Mundo do Qatar.
O Ministério Público de Madri arquivou a denúncia sobre os gritos e cânticos racistas dirigidos a Vinícius durante o dérbi. O MP apontou que os atos "não constituiriam crime contra a dignidade da pessoa afetada", além de dizer que os cantos não foram repetidos mais de duas vezes "e que duraram alguns segundos". Ou seja, racismo pode, desde que no campo de futebol e se for rapidinho. Ali, foi dada a senha para que tudo se repetisse e ampliasse.
Depois do dérbi, o Real Madrid teve uma sequência de jogos em casa e também pela Champions League. Mas houve tempo para um novo momento marcante, um jogo imediatamente antes da Copa e para o qual poucos demos atenção. Em 7 de novembro, em Vallecas, o Real perdeu por 3 a 2 para o Rayo Vallecano e perdeu a invencibilidade e a liderança para o Barcelona.
Vamos ter a revanche daquele jogo amanhã, quando o Real receber o Rayo Vallecano pelo Campeonato Espanhol. Sabem o que aconteceu em Vallecas? Vini apanhou, sofreu sete faltas, revoltou-se e levou cartão amarelo. Uma rápida procura na Internet vai nos mostrar que, aqui no Brasil, as manchetes foram na linha "com Vini apagado, Real perde". Aquele jogo marcou o início de uma tendência que é esportiva e que, posteriormente, se confundiu completamente com a questão do racismo.
Vinícius apanhou, e a arbitragem foi conivente com isso. Como consequência, ele passou a bater também e entrar na pilha dos rivais. A tendência que se repetiu ao longo de toda a Liga. Os rivais viram que bater em Vinícius dava resultado. E os torcedores adversários, idem. Em cada estádio que o Real Madrid começou a visitar após a Copa do Mundo, a começar pelo de Valladolid, o clube de Ronaldo, no dia 30 de dezembro, ele passou a receber muita pressão vinda das arquibancadas.
A maioria das pessoas xingavam Vinícius e tentavam tirá-lo do sério por uma questão esportiva - querer ver o time vencer, incomodar o melhor jogador adversário que, além do mais, é do Real Madrid, o clube mais detestado do país (exceto pelos próprios torcedores). Quem nunca fez isso em um estádio? Quem nunca viu isso no futebol? Mas, aí, entra um porém. No meio deste monte de gente, estavam também os energúmenos racistas, empoderados pelo discurso político dos últimos anos, pela decisão judicial nefasta sobre aquele Atlético x Real e pela inação da Liga após aqueles ocorridos.
Quem teria o estádio fechado ou quem seria preso, se nada aconteceu com o Atlético e seus torcedores racistas naquele dia de setembro? Oras bolas, eles sabiam que nada aconteceria. E nada aconteceu. E Vinícius foi ficando cada vez mais pilhado, entrando em cada estádio espanhol e compreensivelmente vendo 30, 40, 50 mil racistas nas arquibancadas. Lutando sozinho, sem apoio do clube nem dos companheiros nem da Liga nem das autoridades espanholas.
As imagens horrorosas foram se sucedendo: Villarreal, depois Bilbao, depois Mallorca. Tudo isso em menos de um mês. Estamos ainda no início de fevereiro, e Vinícius só foi respirar no Mundial de Clubes. Por que neste momento, em janeiro/fevereiro, o jornalismo brasileiro não se manifestou com virulência? Nem o governo recém-empossado? Nem La Liga? Nem o Real Madrid? Nem os jogadores de outras partes do mundo? Vinícius estava aguentando sozinho aquilo que começou em setembro e ganhou corpo após a Copa do Mundo.
Jogadores adversários entenderam que podiam bater e provocar à vontade, pois os árbitros eram coniventes. A imprensa espanhola que faz jornalismo de araque, clubista e antimadridista (também existe a madridista), incorporou a narrativa de que tudo aquilo era uma questão esportiva. Torcedores adversários compraram a ideia de que atingir Vinícius era uma boa estratégia e, no meio de tudo isso, estavam os racistas reais nadando de braçadas e soltando pela boca as merdas que têm na cabeça.
Não, eles não são o estádio inteiro. Mas eles são dezenas, centenas, basta olhar os resultados eleitorais dos últimos dez anos para entender que esta parcela da sociedade espanhola (e da inglesa e da brasileira e da americana e da húngara e de tantos países) não é insignificante. Eles ficaram encobertos por uma camada de rivalidade esportiva que turvou até as visões mais progressistas da sociedade espanhola. E Vinícius, sozinho contra o mundo, agia como achava que tinha que agir, com indignação. E também com interação e provocação, o que deu combustível a quem não queria deixar aquilo tudo parecer uma questão essencialmente de racismo e xenofobia.
Acelerando três meses no tempo, chegaremos ao jogo de Valência, em que uma parcela ainda maior da torcida local se manifestou chamando Vinícius de macaco. O que fez com que a ficha tenha caído para Carlo Ancelotti, por exemplo, que lá em setembro adotava um discurso apaziguador, de minimizar o que estava acontecendo com seu principal jogador. O discurso do técnico italiano mudou de "a Espanha não é um país racista", em setembro, para "a Liga tem um problema", em maio.
E olhem, até me pergunto se o cartão vermelho dado a Vinícius, depois de ele apontar para um racista na arquibancada e receber um mata-leão do adversário, não tenha sido o verdadeiro catalisador para toda a reação que estamos vivendo. Porque estava faltando só isso, estava faltando justamente isso. Vinícius, a vítima, ser expulso de campo, como se fosse o culpado.
É muito bom que o mundo do futebol e até a esfera governamental estejam agindo. Mas está muito claro que isso chega com oito meses de atraso e que Vinícius talvez não tivesse que passar por tudo o que passou em 2023 nos campos espanhóis.
O Real Madrid foi mole, os árbitros têm grande peso no que aconteceu, La Liga, comandada por um eleitor do VOX, foi absurdamente omissa e as autoridades espanholas não se deram conta da gravidade do que estava acontecendo. Até o Rei tinha de ter se envolvido. Porque hoje a imagem da Espanha, de um país que se desenvolveu incrivelmente e de forma pujante neste século, está seriamente afetada. O futebol tem esse poder, e a Espanha sabe melhor do que ninguém.
Não, a Espanha não é um país racista. Mas é um país que, no momento, foi sequestrado por eles. Sociedade, imprensa, empresas e investidores estão demorando demais para se dar conta de que o futebol e as rivalidades também foram sequestrados por quem semeia o ódio e o caos. O racismo pode até ser individual - e não estrutural - no país, mas as demonstrações têm sido coletivas. Eles são minoria, mas são barulhentos e estão por todas as partes. Precisam ser coibidos de novo, calados de novo, desempoderados de novo e com bastante veemência pelos braços da lei.
Que seja necessário um garoto brasileiro de 22 anos se revoltar para mostrar isso e que ainda tenha gente que não perceba me faz pensar no tamanho do buraco em que as sociedades ocidentais estão metidas.
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