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Julio Gomes

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Atitude de Abel escancara um divórcio péssimo para treinadores e imprensa

29/05/2023 04h00

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Vamos imaginar que um repórter que fica ali na beira do campo, perto do banco de reservas, caminhe até Abel Ferreira. Arranque a prancheta ou bloquinho de anotações de suas mãos. Dê uma olhada no que está ali escrito. E ainda aponte o dedo para alguém no banco palmeirense, um auxiliar indignado, pegando outra prancheta para Abel trabalhar ou então filmando a péssima atitude daquele repórter, e diga: "É por isso que o futebol brasileiro está como está!".

Sim, seria um completo absurdo, não é mesmo? Coisa de loucos.

Pois este é um paralelo às avessas. Porque o que Abel Ferreira fez ontem, após o Atlético x Palmeiras do Mineirão, foi exatamente isso. Não deve ter aumentado suas possibilidades de assumir um clube como o PSG. A família dona do Qatar também não liga muito para a imprensa, mas eles sabem o valor da construção de uma imagem.

Abel falou um monte de asneiras em seu suposto pedido de desculpas na coletiva, minutos depois. Uma delas foi usar a expressão "invasão de privacidade". Pois bem, nem mesmo se ele estivesse em um restaurante e fosse filmado, poderia arrancar o telefone celular daquela pessoa. Mas não era o caso. Era um estádio de futebol, na zona reservada à imprensa, que lá está trabalhando e que tem direito de filmar o que bem entender.

Abel pode fechar quantos treinos do Palmeiras quiser. Pode não dar uma entrevista sequer na vida. Mas não cabe a ele decidir o que a imprensa pode ou não pode fazer em uma área destinada ao trabalho dela. "Há coisas que a imprensa não tem que saber", diz Abel.

Clubes querem esconder tudo de seus torcedores, pois dirigentes não querem ter expostas suas tomadas de decisão. Treinadores não querem que segredos industriais vazem para concorrentes. E jogadores querem o bônus da fama, sem o ônus dela. Tudo é compreensível.

Mas o fechamento de portas gerou um descompasso que parece muito claro para mim. Os treinadores, muitos, sentem-se absolutamente "invadidos" e "desrespeitados" pelas críticas que vêm da imprensa de uma forma geral. Não é só no Brasil, não é só Abel. Consideram muitas das perguntas que lhes são dirigidas completos absurdos. E querem saber? Eles têm certa razão.

Onde está o descompasso? Um jornalista, por mais inexperiente que seja, sabe minimamente aspectos do trabalho de um treinador de futebol. Já os técnicos parecem não saber nada do que é o trabalho de um jornalista. Aliás, me parece claro que esta é uma derrota retumbante da profissão que exerço há 25 anos. A maior parte das sociedades não sabem o que exatamente significa o jornalismo. Então torna-se uma tarefa muito fácil a de quem quer destruir o jornalismo para ter o controle das narrativas e (des) informações.

Alex, ex-Palmeiras, hoje engatinhando na carreira de treinador, disse na semana retrasada, no programa "Baita Amigos", do Bandsports, que resolveu ter uma experiência como comentarista na ESPN para entender como funcionava o jornalismo por dentro.

Eu convidaria Abel Ferreira a fazer o mesmo. Assim como ele leu o livro de Gallardo, deveria esforçar-se minimamente para compreender o que é comunicação e entender qual o verdadeiro compromisso que um jornalista tem com sua profissão.

Jogadores, técnicos, ex-jogadores, torcedores confundem demais o que é uma crítica tresloucada em um programa sensacionalista na televisão com o que é o jornalismo de verdade. Cada vez estamos mais separados, mais distantes. Antigamente, jogadores e treinadores tinham um contato diário com repórteres. Em nome de "evitar crises" e "espiões", as portas foram se fechando. E o que se fechou completamente, de fato, foi o canal de comunicação. Que permitia a ambos os lados aprender. Isso mesmo, aprender. E desenvolver algo que está cada vez mais esquecido na sociedade atual: uma coisinha chamada empatia. Colocar-se no lugar do outro.

Muitos treinadores de futebol acham absurdo "dar satisfação" a quem não tem um décimo do conhecimento deles. Mas não percebem que não se trata disso. Há, também, cada vez mais jovens repórteres que acham que podem tudo e que têm direito de desafiar o entrevistado. Também não se trata disso - na enorme maioria das vezes. E o divórcio se acentua, o descompasso se amplia, um não entende o outro.

O torcedor palmeirense mais fanático odeia a imprensa. Porque tem certeza que "a imprensa" é formada exclusivamente por corintianos e são-paulinos que têm como objetivo único na vida falar mal e criar crises no Palmeiras. Abel não é bobo. Ele já percebeu isso faz tempo, então não faz questão alguma de dar qualquer tipo de abertura para o "inimigo".

O que os treinadores não percebem é que este divórcio com a imprensa é também prejudicial a eles. Porque a falta de empatia e de informações do lado de cá gera erros, sim, faz com que a relação de técnicos com a comunidade em torno do clube torne-se algo 100% dependente de resultados. Ganhou, todo o apoio, mande a imprensa à merda, comunique-se pelo Instagram e pela TV do clube e está tudo certo. Perdeu? Demita! Afinal, o que o torcedor vê é só o resultado, ele está absolutamente impedido de conhecer por dentro o bom (se for bom) trabalho de um treinador.

Abel leu o livro de Telê Santana e voltou a falar dele ontem. Telê Santana também tinha problemas com jornalistas. Mas eram embates francos, públicos, honestos e de duas vias. Sem o jornalismo, que tinha total acesso ao São Paulo Futebol Clube, Telê Santana não teria se transformado no mito que se transformou para todas as torcidas do Brasil. O são-paulino já seria apaixonado por ele de qualquer maneira, pelos resultados históricos. Mas Telê é respeitado por todos porque foi possível, através da comunicação, saber o que ele fazia, como transformava jogadores e vidas.

"O futebol brasileiro está assim por vossa responsabilidade", vociferou Abel ao repórter da Rádio Itatiaia, que estava fazendo o seu trabalho jornalístico ao registrar a cena do treinador palmeirense arrancando o instrumento de trabalho de um colega.

Abel, você parece não ter a menor ideia de por que o futebol brasileiro está assim. E já te digo. Nos nossos anos bons de verdade, a imprensa podia trabalhar livremente, contar histórias e humanizar jogadores e técnicos aos olhos do público.

O jornalismo não tem compromisso com o Palmeiras nem com a seleção brasileira nem com os governantes da vez. O jornalismo tem o compromisso com quem quer saber sobre o Palmeiras. Que um diretor do Palmeiras esteja em busca de um diálogo (muito educado, por sinal) com a arbitragem, após um jogo de decisão polêmica do VAR é, sim, relevante. Que o treinador do Palmeiras queira dar uma camisa para o quarto árbitro é, sim, relevante. O torcedor do Palmeiras que não quer saber nada isso está em seu direito. Mas o torcedor do Palmeiras que queira, sim, ter este tipo de informação, é a razão de o jornalismo existir.

Ontem, além do que fez Abel no Mineirão, o goleiro Cássio, do Corinthians, ficou bravo com uma pergunta feita pelo jornalista Rodrigo Vessoni, do site "Meu Timão". O que Cássio diz é emblemático sobre a falta de entendimento de esportistas para com minha profissão. "Vamos falar da vitória, é hora de a gente se unir um pouquinho...". O jornalismo sério do Meu Timão é feito para um público-alvo, o torcedor do Corinthians. Sim, o Vessoni é corintiano e quer ver o Corinthians ganhar. Isso não significa que o compromisso dele seja com o Corinthians. Não! O compromisso é com o leitor, com quem quer se manter informado sobre o Corinthians e que quer saber por que Cássio fez o gesto que fez após uma grande defesa. Ele é apenas o canal da informação.

O jornalismo não determina quem ganha e quem perde, não determina o calendário do futebol brasileiro, não apara nem rega os gramados, não contrata nem demite jogadores e treinadores. O jornalismo apenas informa, analisa e opina. Há quem informe mal, analise mal e opine mal? Sem dúvida.

Mas te convido, Abel, a conhecer mais sobre a profissão, como ela se desenvolve na prática, as condições de trabalho e o salário médio de quem tenta contar o dia a dia do Palmeiras para a sua massa de torcedores. E tenho certeza que você ficaria envergonhado pelo que fez ontem.