Julio Gomes

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Liga Saudita começa com show de Firmino e mostra ao mundo uma nova Arábia

"Passem a bola para o Bobby que ele marca o gol". Assim cantavam os torcedores do Liverpool para Roberto Firmino na musiquinha que mais gruda nos ouvidos entre todas já criadas em um estádio inglês. Na Arábia Saudita, em Jeddah, não teve musiquinha. Mas houve um coro de "Firmino, Firmino" no estádio quando, aos 10 minutos do jogos de abertura da Liga Saudita, o brasileiro já havia marcado dois gols.

O Al Ahli, de Firmino, começou o campeonato vencendo o Al Hazem por 3 a 1, já que o brasileiro ainda marcaria um terceiro gol - foi o terceiro hat-trick da carreira dele, os outros dois haviam sido realizados com a camisa do Liverpool quando ele viveu o auge técnico, em 2018 e 2019. O jogo foi disputado no estádio Príncipe Abdullah Al-Faisal, o mais antigo de Jeddah, que foi reformado recentemente e receberá o Mundial de Clubes da Fifa no final do ano. 24 mil pessoas compareceram à volta do Al Ahli à primeira divisão - o clube é um dos quatro que está recebendo jogadores de um fundo criado pelo governo da Arábia Saudita para fazer o futebol do país bombar.

O jogo teve uma torcida "de verdade", a do Al Ahly, e uma de mentirinha, a do Hazem - era um grupo de uns 30 caras de camisa amarela, tocando instrumentos e que não gritou gol na hora que o time deles marcou, ou seja, torcida visitante fake. Não entendi bem a razão daquilo.

A "brincadeira" de futebol nas Arábias começou com a chegada de Cristiano Ronaldo, no ano passado. Um mês e pouco atrás, a maior parte dos jogadores que atuam na Europa tratavam a aventura saudita como algo pouco sério. Hoje, tudo mudou. Chegaram Benzema, Firmino, Fabinho, Henderson, Mané, Kanté, o goleiro Mendy, Kessié, Mahrez, Koulibaly, enfim, um monte de gente de primeiro escalão de Champions League. Não são veteraníssimos ou "ex-jogadores em atividade". É gente de peso. Logo logo, começarão a ocupar espaços nestes e em outros times com jogadores mais "classe média" e já preparam para o ano que vem o aumento de 7 para 10 estrangeiros em cada clube.

No caso dos brasileiros, a grande preocupação é a visibilidade - ou seja, seleção brasileira. Após a frustração por ter ficado fora da Copa do Qatar, Firmino preferia ter continuado na Europa, mas foi seduzido pela proposta saudita e escolheu não esperar as oportunidades que poderiam aparecer no Real Madrid ou no Bayern - ambos pendentes de Kane. Fabinho me contou que essa foi a principal preocupação, mas que o Liverpool aceitou "rápido demais" a proposta do Al Ittihad (leia-se, do Reino Saudita) e ele preferiu não ficar para a reconstrução do clube.

O caso de Ibañez, o zagueiro de 24 anos que já tem convocações, foi um pouco diferente. Ele estava de malas prontas para jogar na Premier, no Nottingham Forest. Em cima da hora, chegou a proposta saudita para ganhar quatro vezes mais. A Roma topou na hora e deixou a decisão para o jogador. Ele acabou fazendo a aposta, acreditando a Liga Saudita terá suficiente visibilidade para não atirar jogadores ao ostracismo.

O zagueiro chegou a Jeddah na quinta-feira, encontrou Firmino no lobby, fez um treino e já foi para o jogo na sexta. O lobby do hotel Shangri-La, 5 estrelas, claro, é um oásis para fãs - se eles pudessem chegar até lá. São jogadores dos dois clubes grandes passando para cima e para baixo. Você gira a cabeça e lá está Benzema tomando um cafezinho. As famílias correm para encontrar o melhor apartamento ou a melhor casa à disposição - não são muitas as opções de casarões ou apartamentões que sejam desprovidos de uma hiperclássica decoração árabe.

Dos quatro "grandes", o Al Ahly era o mais desfigurado, por vir de uma temporada na segundona. Precisa, basicamente, de jogadores para todas as posições, enquanto Ittihad, Nasr e, principalmente, Hilal, já têm uma base sólida e estão só acrescentando estrelas a ela. Os três citados são treinados por portugueses. O Al Ahly tentou José Mourinho, mas este foi um que, segundo Ibañez, que jogava para Mou na Roma, não quis apostar na Arábia Saudita. O clube acabou fugindo da conexão lusa e trazendo o alemão Matthias Jaissle, jovem de só 35 anos e que foi colega de Firmino no Hoffenheim - já lhe colocou como capitão na partida de ontem.

Entre os três brasileiros do Al Ahly, as conversas quase sempre giram em torno de dois temas comuns. O calor (34 graus à noite), que obriga o jogo a ser mais cadenciado, e o espanto com a cidade - espanto compartilhado por este colunista.

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Que a Arábia Saudita estava começando a se abrir, já sabíamos. Mas o fato é que o processo de dois ou três anos atrás já está a todo vapor, e a Arábia Saudita segue os passos de modernização do Qatar (Doha) e dos Emirados Árabes (Dubai e Abu Dhabi). Jeddah é a menina dos olhos. A cidade de 5 milhões de habitantes está a menos de uma hora de Mecca (destino sagrado e obrigatório para todos os muçulmanos do planeta), então já é uma porta natural do turismo. Além disso, está no Mar Vermelho, de águas quentes, lugar perfeito para a construção de balneários paradisíacos.

Em 2017, o rei Salman bin Abdulaziz Al Saud mudou a linha sucessória do país e passou o poder para o filho Mohammed bin Salman, de perfil "moderninho". Os países do Oriente Médio que têm gigantescas fontes energéticas sabem que a receita não é infinita e tentam se preparar para o futuro, além de usarem setores como o esporte para terem suas ditaduras teocráticas "normalizadas" pelo Ocidente.

A Arábia Saudita, ao contrário do Qatar e dos Emirados, têm uma população grande e mão de obra própria. Assim como os vizinhos, no entanto, trata os estrangeiros como cidadãos de segunda categoria - não os ocidentais nem jogadores de futebol, é claro, mas os filhos de imigrantes que muitas vezes até nasceram no país, mas nunca tiveram direito sequer à cidadania. Está aí uma boa causa para os jogadores de futebol interessados em ajudar no desenvolvimento do país.

Na parte religiosa, os jogadores já estão pondo a mão na massa e mostrando que os costumes terão de mudar. Nesta semana, Cristiano Ronaldo marcou um gol e fez um raro e espalhafatoso sinal da cruz antes do tradicional "siiiim". Está na cara que era caso pensado. A Arábia Saudita não reconhece Israel, ainda que esteja em negociações com os EUA para fazê-lo. E tem uma tradição de perseguição a cristãos - terão de parar com isso, não parece que tem muito sentido perseguir Cristiano Ronaldo. Firmino, por sua vez, celebrou um dos gols ontem apontando os dedos para o céu, seguindo a senha de CR7.

Jeddah já passa por uma transformação visível, com inúmeros shopping centers e restaurantes de todas as marcas conhecidas no mundo inteiro. Nas ruas, a esmagadora maioria das mulheres seguem cobrindo o corpo inteiro e deixando só os olhos à vista, mas já se nota a presença "ocidental" com mulheres vestindo outro tipo de roupas e com os cabelos e partes do corpo à mostra. No estádio, a presença de mulheres, antes proibida, agora é permitida - havia algumas na abertura do campeonato, sexta-feira.

Andando de táxi e uber pela cidade, identifiquei um bom número de pessoas falando inglês, ainda que mal - possivelmente em índices maiores que os que encontraria no Brasil. A maior parte deles tenta ser amável. E praticamente todos se prontificam a oferecer o wi-fi criando o hotspot no próprio celular - algo inimaginável em outras partes do mundo.

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Bebidas? Ainda são proibidas. Mas certamente não demorará para ser seguido o mesmo caminho dos outros vizinhos - venda em hotéis internacionais e algumas quotas mensais de compras para os residentes.

A Arábia Saudita segue sendo uma ditadura, um país totalitário e que, por trás das belas fachadas, segue reprimindo e, repito, tratando trabalhadores estrangeiros como gente descartável. Talvez a nova Arábia nunca seja boa o suficiente para os meus olhos ou para muitos do Ocidente. Mas ela certamente é melhor do que a velha Arábia. Também não é razoável que tudo mude de uma vez, o que também não se pode é passar pano para algumas coisas inegociáveis, com a ausência de imprensa livre.

O fato é que, com a nova liderança, o berço do islamismo está se abrindo ao mundo e isso vai gerar uma série de consequências nos próprios anos. Uma bastante visível para nós, que gostamos do esporte, é uma liga de futebol que veio para ficar. A outra, que certamente virá por aí na próxima década, é mais uma Copa do Mundo no Oriente Médio.

Opinião

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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