Julio Gomes

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Debate sobre futebol de seleções gira em torno de egoísmo e incoerência

Arboleda se machucou no jogo do Equador e talvez vá desfalcar o São Paulo na final da Copa do Brasil. É a senha. Lá vêm os clubes reclamar de futebol de seleções e, com eles, muitos colegas que respeito falarem alto contra o mesmo.

O argumento é o de sempre: "Os clubes pagam os jogadores, então não é justo que sejam prejudicados pelas seleções". O debate, no meu ponto de vista, é válido. E é triste. Porque é um debate pautado por uma lógica mercadológica, capitalista e egoísta - como costumam ser as lógicas mercadológicas e capitalistas, por sinal.

Vejamos. Como é possível argumentar que "o futebol é das pessoas" e criticar os abusivos preços de ingressos em alguns jogos, como, por exemplo, as finais da Copa do Brasil, desprezando a possibilidade de os clubes fazerem dinheiro com isso, e ao mesmo colocar as finanças dos clubes como ponto central para defender "o fim" ou "drástica redução" do futebol de seleções?

Eu vejo uma claríssima incoerência aqui. Ou seja, há "povos e povos".

O "povo" torcedor do meu time precisa ter o direito de ver jogo de futebol no estádio pagando pouco, em nome de "arquibancadas com alma e vibrantes", mesmo que isso signifique um prejuízo financeiro ao clube - ou, pelo menos, signifique o desperdício da chance de fazer caixa.

Mas, por outro lado, o "povo" que ama o futebol de seleções ou que se identifica e apaixona pela camisa de seu país, esse aí não tem direito a nada. Porque o futebol de seleções é o grande vilão das finanças dos clubes ao impedir alguns jogadores de treinarem, jogarem ou, o pior de tudo, ao devolvê-los lesionados.

As finanças dos clubes precisam ser protegidas ou não precisam ser protegidas? Depende de que tipo de "povo" se quer agradar, é isso?

Minha posição é firme. O futebol como negócio puro é um troço triste . Compreendo perfeitamente os caminhos que o mundo escolheu e que os clubes se transformaram em mega corporações, que movimentam milhões ou bilhões. E, como fazem todas as mega corporações, apenas tratam de defender os próprios interesses financeiros, sem nenhuma preocupação com o todo.

Então para mim é natural ver clubes querendo cobrar caro por ingressos em jogos de "alta demanda". Assim como é natural ver clubes querendo que seus jogadores não defendam as seleções de seus países. E tampouco me espanta que uma Liga de clubes no Brasil nunca vá sair do papel porque uns querem ganhar (muito) mais que outros, já que "geram mais riqueza" e "têm mais torcida". O que me espanta de verdade é tanta gente boa não perceber que o conceito é exatamente o mesmo. Estamos falando da mesma coisa aqui: business. Capitalismo selvagem.

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Não tem sentido defender a saúde financeira dos clubes como argumento central para não ceder jogadores às seleções. E não defender a saúde financeira dos clubes quando querem cobrar ingresso caro. "É diferente!", dirão. "Não, não é", digo eu. Só muda, lá na ponta final, o tipo de gente prejudicada. Por que o fanático pelo Flamengo importa e o apaixonado por ver a Colômbia jogar não importa? Por que quem lota o Morumbi importa e quem lota o Mangueirão não importa?

Isso é "paixão seletiva", que anda de mãos dadas com a "indignação seletiva". A mãe das duas tem nome próprio: chama-se "incoerência".

Minha posição é firme, repito. Eu sou absolutamente contrário a tudo isso. Sou o idiota ali que fica esmurrando ponta de faca. Mas pelo menos sou coerente. Não tenho um discurso "pró-povo" quando se trata do meu clube e "antipovo" quando se trata de uma paixão maravilhosa, que é a paixão pelo futebol de seleções.

O que eu vi em Belém e em Lima, em apenas dois simples jogos de eliminatórias sul-americanas, passou bastante longe de ser algo insignificante. Eu não estou aqui para convencer ninguém a gostar da seleção brasileira ou ver jogos que consideram pouco importantes. Mas tampouco irão me convencer, ainda mais do sofá de casa, de que o futebol de seleções "não importa" e "não desperta interesse".

Este mesmo discurso elitista é o que fez o futebol brasileiro caminhar para a triste nacionalização que ele vive hoje. Os tempos dourados do futebol brasileiro não foram os de Ligas, arenas, pontos corridos, direitos de TV incrivelmente altos e mal distribuídos, do cada um por si. O futebol brasileiro virou o que virou por causa da regionalização, das rivalidades que movimentaram por anos várias cidades médias e grandes do país e da seleção brasileira como agregadora de tudo.

Já mataram a regionalização, falta só a pá de cal, que é acabar de vez com os estaduais. E agora querem matar também o futebol de seleções. Querem que fiquem lá Flamengo, São Paulo, Palmeiras e Corinthians. Nem precisa dos outros, se bobear. Talvez uns quatro ou cinco aí, um gaúcho e um mineiro. Mais que isso, já enche o saco. Que se danem os Remos, Paysandus, Guaranis e Portuguesas. Às favas com a história, com o povo peruano e com a seleção do Equador, que só serve para perder na fase de grupos da Copa e tirar o Arboleda da final da Copa do Brasil.

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Quem massacra o futebol de seleções em nome do "o clube que paga salário e não pode ser prejudicado" pode estar se esquecendo que clubes são - ou deveriam ser - instituições sem fins lucrativos, que já ganham muito mais dinheiro do que deveriam e, por isso, pagam altos salários a jogadores. Ninguém está fazendo favor a ninguém e sabe-se perfeitamente que um atleta pode se lesionar a qualquer momento. Aliás, os clubes se preocupam bastante com lesões físicas que acontecem nas seleções, mas não se preocupam muito com a saúde mental dos atletas, menos ainda quando estes são apenas garotos em formação.

Quem massacra o futebol de seleções em nome do "o clube que paga salário e não pode ser prejudicado" pode estar se esquecendo também do que verdadeiramente querem os jogadores. Que são, afinal, os que fazem o futebol acontecer. Sem torcida, tem jogo. Sem jogador, não tem jogo. Quantos jogadores reclamam do futebol de seleções? Quantos jogadores abrem mão de jogar por seu país porque querem se preparar melhor para a próxima partida do clube?

Pode até ser o caso com um ou outro europeu. E isso acontece porque há uma evidente falta de identificação de alguns cidadãos que jogam bola com a própria nacionalidade que aparece em seu passaporte. Tem a ver com outras questões de identidade, muito mais profundas do que o futebol.

Perguntem ao Arboleda se ele ficou mais triste e preocupado com a lesão que sofreu ano passado no clube, que, na prática, lhe tirou da Copa do Mundo de Qatar (estava lá, mas sem ritmo e condições de jogo, apesar dos esforços) ou com a lesão que sofreu defendendo seu país e que lhe tirará de um torneio que o São Paulo joga todo ano. Perguntem ao Salah se preferia ter vencido o título da Champions League de 2018 com o Liverpool, quando se machucou na final, ou ter jogado direito e em condições a Copa do Mundo pelo Egito, que não participava desde os tempos de Cleópatra. Perguntem ao Mané como ele se sentiu ao ser escalado para um jogo inútil do Bayern de Munique e ter perdido o último Mundial.

"Que se dane o jogador", dirão alguns. "Ele é pago para defender o clube". Foi assim que se tratou o sonho de Pedro em disputar uma Olimpíada pelo Brasil, ano retrasado. Uma Olimpíada! Menos humano do que isso, simplesmente impossível.

A seleção brasileira pode não ser mais tão importante para muita gente, e está tudo bem. Ninguém é obrigado a gostar de nada. Para os jogadores, eu garanto para vocês, que a seleção é a coisa mais importante que existe com uma certa diferença para as outras todas.

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Por fim, um tema derradeiro. Quem fala que há muitos jogos inúteis de seleções se esquece que o Campeonato Brasileiro tem 380 partidas - por ano.

Quem escreve aqui é alguém que há muitos anos fala que a Champions League virou algo tão grandioso quanto a Copa do Mundo. Só que as coisas são dinâmicas. E a elitização, lá, como cá, faz com que hoje exista a seguinte situação: tem menos times que podem ganhar a Champions e menos times que podem ganhar o Brasileirão do que seleções que podem ganhar a Copa. Absurdo, né? Pois é. É assim. A Copa, antes tão previsível, hoje virou mais imprevisível do que torneios outrora democráticos.

Os jogos de seleções são chamados de "inúteis" pela diferença grande de forças em determinados locais e "falta de competitividade". As eliminatórias são "amistosos", dizem. Eu não vejo nada de amistoso em jogo algum na América do Sul. Sobre a quantidade de jogos "inúteis" que a diferença grande de forças gera no Brasil e na Europa, desta ninguém fala. Toda partida dos pontos corridos "é como uma final", dizem. Aham. Mamãe incoerência.

O debate sobre o formato de eliminatórias sul-americanas (e outras) é válido. O debate sobre a Copa do Mundo inchada é para lá de válido. O debate sobre o que os dirigentes de federações e confederações fazem com o dinheiro que ganham, que deveria ser utilizado para o fomento do esporte e distribuição entre os próprios clubes mais humildes e de bairro, também é muito, muito, muito válido e necessário. O debate sobre calendário, idem. Tudo isso pode e deve ser conversado e aprofundado.

Mas não porque os clubes gigantes e de mais torcida e dinheiro são coitadinhos. O futebol de clubes é importante, o de seleções também. A paixão pelos clubes é importante, pelas seleções, também. Podem e devem andar de mãos dadas. O futebol não pode ser coisa para só um tipo de gente ou só para um tipo de "povo".

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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