Julio Gomes

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Eu achava Zagallo um mala. E hoje morro de saudades

Telê ou Zagallo? O Brasil tem que escolher! Quem será o próximo treinador da seleção brasileira na Copa de 86?

Este era o grande debate nacional ali pelos idos de 1985. Ou pelo menos era assim que enxergava uma criança de 5 anos. Esta é uma das primeiras memórias que tenho do futebol. Em casa, era unanimidade: Telê. Nem tanto pelo saudosismo ou por algum tipo de encantamento que havia gerado a seleção de 82. Acho, sinceramente, que havia um "quê" de bairrismo ali. Ou de anti-carioquismo. Sim, Zagallo era alagoano de nascimento, mas carioca de coração - chegou ao Rio na adolescência para nunca mais sair.

Sinceramente, por muitos anos achei Zagallo uma mala sem alça, com aquele pachequismo exacerbado quando se tratava de seleção brasileira. Uma representação da soberba canarinha. Hoje, sinto falta do Velho Lobo. Sinto falta de gente com história, bagagem e que genuinamente se importe com o que significam a seleção brasileira e o futebol brasileiro.

As pessoas estão perdendo a noção. O futebol nos define como povo. Escrevo este texto em Liverpool, para onde vim celebrar a noite de autógrafos da autobiografia de Roberto Firmino, o único outro alagoano (além de Zagallo) que já fez gol em Copa do Mundo. No evento, sexta à noite, havia um grupo de quatro ou cinco garotos japoneses com camisas, revistas, fotos, tudo do Liverpool, nada do Brasil. Um deles veio do Japão só para isso. Centenas de pessoas fizeram fila debaixo de chuva e frio para comprar o livro e ter uma foto ou um momento com Firmino. Um total de zero pessoas apareceu com a camisa do Brasil. Só um inglês veio com uma bandeirinha verde e amarela em mãos.

Por que conto isso? Porque vieram na memória meus primeiros anos de cobertura de seleção, lá para 2001, 2002, 2003, seguindo por vários ciclos de Copa. Era impressionante. Em qualquer hotel, em qualquer lugar do mundo, havia um monte de gente atrás da seleção brasileira. Mas um monte, acreditem. Japoneses, com este mesmo perfil dos garotos que vi aqui em Liverpool, eram figurinhas constantes. Em 2023, depois de um hiato de vários anos, voltei a seguir de perto a seleção brasileira. E não tinha ninguém - ou quase ninguém - interessado. Poucas pessoas. Alguma bagunça em Belém, mas nada em outros países. A diferença é brutal em 20 anos.

O futebol brasileiro deixou de ser a referência. Pode ainda ser amado aqui e ali. É claro que nossos jogadores são respeitados - porque são bons, afinal de contas. Mas não existe mais a veneração por tudo o que é do Brasil, não existe mais o carimbo em nossa testa - "brasileiro? futebol, alegria, vem aqui que te pago uma cerveja, te libero de uma multa, te deixo entrar de graça, quero ser teu amigo".

Zagallo era uma figura que entendia perfeitamente e representava essa importância gigantesca. Hoje, entendo que não se tratava apenas de pachequismo, mas de sentimento genuíno.

Como eu disse, achava Zagallo um mala. Se você juntasse Zagallo com as transmissões do Galvão, então.... Barrabás! Que inferno. Mas éramos felizes e não sabíamos. Tínhamos um salto mais alto que o Corcovado quando se tratava de futebol. Era um orgulho justificado. Éramos os melhores, sabíamos disso e os outros também sabiam. Talvez nos anos 90 a maré já estivesse começando a mudar. E quem acompanhava futebol europeu muito de perto (e como dava), como eu, já via que aquela soberba ia acabar mal.

Talvez daí viesse a implicância com Zagallo. Enquanto estava todo mundo evoluindo, melhorando, trabalhando, ele estava lá com aquelas coisas de 13 letras, amarelinha, quatro exxxtrelaxxx no peito, vão ter que me engolir. Eu não acho que ele notava o que estava rolando, e isso me irritava.

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Me irritou também ao não levar Zé Roberto para a Olimpíada de 1996 e por levar Bebeto (em vez de Romário). Me irritou por cortar Romário em 98. Me irritou por insistir com Bebeto naquela Copa, quando Edmundo era dos melhores do mundo. Mas o Velho Lobo não era bobo. Se olharmos com cuidado, veremos que ele acertava muito mais do que errava nas convocações e escalações. E se hoje olhamos para a "velha guarda" com respeito e elogiamos gente como Carlo Ancelotti por "saber lidar com estrelas", por que não admirar o que fazia Zagallo, seja nas parcerias com Parreira, seja quando tinha o comando da seleção?

Zagallo me conquistou, claro, quando assumiu a Portuguesa, em 1999. Seis ou sete meses depois da final do Stade de France, lá estava ele em Santa Bárbara D'Oeste. Eu e meu irmão fomos a esse jogo. Acho que ganhamos, não lembro. A Lusa era fogo naqueles anos. Que saudades. Vinha de um 98 fantástico, semifinal do Paulista (roubada por Castrilli) e semifinal de Brasileirão. Candinho saiu da Portuguesa direto para a seleção, para ser o Zagallo de Luxemburgo. E o Velho Lobo veio pela primeira vez trabalhar em São Paulo.

Tudo o que o torcedor da Lusa sempre quis era que o clube parasse de ser sumariamente ignorado pela imprensa. Queríamos atenção. E Zagallo trouxe exatamente isso.

O trabalho mesmo foi mais ou menos. Um bom Paulistão, um péssimo Brasileirão. Saiu 9 ou 10 meses depois e aquele time acabaria o campeonato em último - não foi rebaixado porque foi o ano daquela história de média de pontos, somando anos anteriores. Uma grande decepção, considerando as temporadas enormes da Lusa de 95 a 98. Devo ter xingado o Zagallo algumas vezes no Canindé. Mas, no fundo no fundo, eu já gostava dele. Ele tinha feito bem pelo meu clube. Comecei a trabalhar no jornalismo mais ou menos nessa época, acompanhei de perto a nova passagem da dupla Parreira-Zagallo, de 2003 a 2006, e conversei algumas vezes com o Lobo. Carisma puro.

Pelé foi Pelé. Mas ninguém representou tanto a seleção brasileira, a cor da camisa, como Mário Jorge Lobo Zagallo. Ninguém se comunicou como ele. Sabia perfeitamente como se expressar e como fazer as pessoas ficarem identificadas. Tenho certeza que os jovens do milênio, que leram a notícia da morte ontem, não têm a noção do que esse cara foi.

Li ao longo do dia textos maravilhosos, relatos magníficos, lembranças emocionantes. Dezenas de colegas viveram muito mais de perto os anos de Zagallo na seleção e conviveram com ele. Leiam todos esses textos, porque eles darão a dimensão exata de quem foi Zagallo. Somos o que somos como povo por causa do futebol. E ninguém deu tanto valor a isso quanto o Lobo.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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