Miguel Ângelo da Luz: Riram quando eu disse que seríamos campeões mundiais
Só quatro países foram campeões do mundo de basquete feminino. Os Estados Unidos são os grandes dominadores - 11 títulos, sendo 8 dos últimos 10. A extinta União Soviética, que rivalizava com os EUA em tudo, ganhou 6 vezes o campeonato na época da Guerra Fria e quando as americanas não iam com força máxima a alguns Mundiais. A Austrália conseguiu um milagre em 2006, no Mundial disputado aqui no Brasil - mas milagre mesmo tinha feito a Rússia ao ganhar dos EUA na semifinal antes.
E o quarto país campeão do mundo foi o Brasil. O único na história, além das russas, a bater as americanas. Em um dia 12 de junho, 30 anos atrás, o Brasil acordou com a notícia do título mundial conquistado por Paula, Hortência e companhia. "O Brasil acorda campeão do mundo!", gritou Luciano do Valle, que mostrou o feito ao lado do histórico Álvaro José. Eram transmissões na madrugada, as imagens eram difíceis de ver, os canais eram sintonizados nas antenas. A juventude não tem a menor ideia de como o mundo era diferente 30 anos atrás.
O Brasil foi campeão do mundo de futebol também em 1994. O que logicamente foi um feito e tanto para um país monoesportivo, como o nosso. Mas o título mais improvável foi o do basquete. Apesar de ter dado a sorte de duas gênias - Paula e Hortência - terem nascido e jogado juntas, além de uma série de outras jogadoras históricas, como Janeth, não se sabia exatamente do que aquele time era capaz. O título do Pan em 91 havia sido seguido de uma decepcionante Olimpíada em Barcelona-92.
O Brasil perdeu da Eslováquia na primeira fase do Mundial, da China na segunda fase, mas conseguiu ir às semifinais. O jogo contra os Estados Unidos era um suposto fim de linha na aventura, disputada em solo australiano. Mas a seleção ganhou dos EUA por 110 a 107 em uma atuação épica. Depois bateu a China na final e foi campeão (esta reportagem da Folha de hoje é ótima, recomendo leitura).
Paula e Hortência, Hortência e Paula. O time, claro, ia além delas. O técnico era Miguel Ângelo da Luz, então com 35 anos de idade (hoje tem 65). Uma aposta da Confederação. Substituto da histórica Maria Helena, Miguel Ângelo da Luz chegou a ser achincalhado por imprensa e público paulistas antes daquele Mundial. Depois do título, seria medalhista de prata em Atlanta-96, campeão brasileiro dirigindo o Flamengo (no masculino), mas mesmo assim ficou esquecido no universo do basquete nacional.
Basquete nacional, diga-se, que não é exatamente um exemplo bem sucedido de gestão. O eterno segundo esporte do brasileiro hoje está lá embaixo em qualquer ranking de preferência. Poucas modalidades foram tão mal tratadas nos últimos 30 anos quanto o basquete. Mas, ao contrário de outros, Miguel Ângelo da Luz segue fazendo a parte dele. Comanda um projeto social no Rio, o "Basquete da Luz", tentando a duras penas fazer vidas melhores e dar oportunidades. É um dos bons brasileiros que trabalham na sombra, com poucas ajudas, muito suor e sacrifício.
Hoje pela manhã, o treinador compartilhou um pequeno testemunho e autorizou esta coluna a replicar o texto. Aqui vai:
Há 30 anos, eu tinha 35 anos e um sonho: conquistar o mundo.
Mas esse não era um sonho utópico apenas: A mim tivera sido confiado o papel de técnico de uma das gerações mais talentosas que já existiram no nosso país. "Quem é esse cara?", "Que desperdício colocar essa geração sob o comando de alguém tão novo que não vai saber o que fazer!".
Olhando para trás, eu consigo entender a desconfiança e (algumas) críticas (que não foram poucas) com as quais fui acolhido pela imprensa e pares. Cabelos brancos ainda são a principal fonte de credibilidade. E naquela época eu não tinha nenhum. Mas, para ser sincero, hoje eu até agradeço todo aquele "carinho": aquilo foi o meu principal combustível.
Eu sabia que eu estava cercado de uma comissão técnica focada em resultados, mas ao mesmo tempo muito humana, ingrediente essencial para o sucesso. Eu sabia do potencial das jogadoras: eu e o mundo já conhecíamos as brilhantes Paula e Hortência e a mágica com que elas conseguiam fazer parecer que era fácil. Mas eu sabia também da raça da Alê e da Simone, da ousadia da Janeth e da Leila, da força da Ruth e da Cyntia, da inteligência da Helen e da Adriana, da versatilidade da Roseli e da Dalila.
Talvez isso muitos dos que riram naquela sala de conferência de imprensa não sabiam. Ali ouviu-se uma grande risada, após minha resposta à pergunta "Qual resultado você espera alcançar nesse Mundial?" ter sido "Nós vamos ser campeões".
Tudo bem que até então apenas EUA e União Soviética tinham sido campeões daquela competição. Mas eu tinha certeza, desde a escalação das nossas 12 heroínas, que tínhamos todas as credenciais para entrar para esse seleto clube.
O resultado está aí. Ninguém muda a história. Passados 30 anos, os meus cabelos (esses sim mudam!) agora estão brancos. Mas a medalha que trouxemos da Austrália continua dourada.
Obrigado a Sérgio Maroneze, Hermes Balbino, eternos Waldyr Pagan e Sergio Barros (in memorian), Raimundo Nonato, prof. Renato Brito Cunha, Dra. Marly, Marisia, José Pedro, Eduardo Augusto (árbitro), Marcelo Barreto (jornalista) e Juarez Araújo (jornalista).
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Quero receberObrigado a Hortência, Helen, Adriana, Leila, Paula, Janeth, Roseli, Simone, Ruth (in memorian), Alessandra, Cyntia e Dalila. Vocês realizaram meu sonho. Vocês mudaram a minha história.
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