Espanha criou digital, normalizou vitórias e virou o 'novo Brasil'
A Espanha não tinha estilo nem vitórias. Era uma seleção chamada de "Fúria", um apelido que vinha dos anos 20 e representava a "garra" no terreno de jogo. E que quase sempre perdia uma seleção maior ou melhor, a Itália, por exemplo. Muitos diziam que a seleção espanhola nunca teria o sucesso do universo de clubes porque o país era fraturado por nacionalismos. O sujeito é catalão ou basco ou andaluz ou isso ou aquilo antes de se sentir espanhol.
Por onde começou a mudança? É claro que nunca é uma coisa só. Mas, no caso da Espanha, é possível determinar uma data e um local. 22 de junho de 2008, em Viena. O dia que a Espanha venceu a Itália, nas quartas de final, nos pênaltis (outro trauma), pela Euro-08. O processo estava em curso. Luis Aragonés, o técnico de então, havia rompido com algumas tradições, desafiado o sistema, deixado de convocar alguns jogadores chamados de "vacas sagradas", como Raúl. Resolveu apostar por um estilo, o do Barcelona, que já chamava a atenção e encantava.
A vitória sobre a Itália foi o momento-chave, que criou as condições para tudo o que viria. Até a coisa dos nacionalismos ficou de lado e virou algo positivo, como a seleção como local para valores e culturas agregados.
A Espanha passou a ter uma estética de jogo que fez a Fúria ficar no passado. O estilo mudou muito ao longo dos anos, os técnicos mudaram, não existe mais o tal "tiki-taka", mas existe algo que perdura: o amor por jogar bem o futebol. Por tratar bem a bola, por ser protagonista. Esta é uma impressão digital, uma marca. É uma marca ao mesmo tempo objetiva e abstrata e que consegue sobreviver a diferentes sistemas táticos e jogadores. É claro que tudo fica mais fácil quando se ganha.
Classificação e jogos
Em 16 anos, desde aquela maravilhosa campanha na Áustria, a Espanha conquistou três Euros - são três das últimas cinco. Ganhou uma Copa do Mundo, o que nunca havia feito. E nunca mais deu papelão. Teve lá seus baixos, é verdade, especialmente em 2013 e 2014, quando fracassou em campos brasileiros. Mas a Espanha, mesmo sem ter chegado de novo a uma final de Copa, sempre esteve aí, entre as favoritas, entre as seleções que precisavam ser vistas. É o tal protagonismo.
A Espanha não pensa mais nas derrotas. Pensa em vitórias. Normalizou os títulos. Em um piscar de olhos, é a seleção mais vencedora da Europa.
Por um acaso - eu tinha férias marcadas havia mais de ano - desembarquei em Madri no dia da final contra a Inglaterra. Caminhei bastante pela cidade, observei comportamentos e assisti à final na casa de um amigo, junto com várias gerações de espanhóis. Foi muito interessante ver a mudança, 20 anos depois de eu ter chegado para viver na capital, estudar e trabalhar. A certeza da derrota, a piada pronta, desapareceu. O país inteiro, mesmo nos rincões "menos" espanhóis, se identifica com um time de futebol que joga bola.
Durante o jogo, é claro que havia uma cornetada aqui, outra ali. Morata é o "favorito", mas também, convenhamos, pouco faz para ser elogiado. Também tem algum "clubismo" meio sério, meio na brincadeira, como os pedidos de "balón de oro a Carvajal!" quando o lateral do Real Madrid acertava alguma jogada ou fazia um desarme importante. A empolgação nítida, porém, é com quem joga bola. Yamal, Nico Williams e Olmo. É a paixão pelo bom jogo.
Não houve choro com o título, só comemoração. Os mais jovens, claramente mal acostumados - afinal, ser campeão virou hábito. Os mais velhos entendem melhor o tamanho histórico de outra Euro conquistada.
A Espanha conseguiu virar neste século o que o Brasil era no passado. Uma fonte inesgotável de talentos, técnicos que são procurados e se espalham pelo mundo para ensinar o "novo" futebol, seleções de base que ganham quase tudo, seleção principal que tem estilo e confiança, que é temida por todos e que se acostumou a vencer. A Espanha ficou grandona.
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