Julio Gomes

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OpiniãoEsporte

O sorriso olímpico e vencedor do ciclista brasileiro no meio do nada

O plano sempre foi claro. Na minha Olimpíada com a família, rodando de motorhome em volta de Paris, o dia 3 de agosto estava marcado com canetinha verde-limão no calendário: dia do ciclismo de estrada.

Quem dá bola para ciclismo de estrada no Brasil? Ninguém, vamos falar a verdade. Na TV, sempre tivemos os esportes coletivos, o judô, natação, atletismo. Ou alguma modalidade aleatória em que brasileiro tenha chance de medalhas. Ninguém liga para ciclismo.

Meu primeiro contato com ciclismo foi 20 anos atrás, quando fiz meu mestrado na Eurosport, um canal de TV europeu, mas baseado em Paris, e a missão era acompanhar o Tour de France a cada minuto, cada pedalada. Fui me familiarizando com os nomes, as táticas, o jogo de equipe. Entendi que aquilo era muito mais do que uma simples corrida de bicicleta. Os anos se passaram, e no Brasil nunca deixei de dar uma espiada no Tour. Brilhantemente narrado pelo amigo Ari Aguiar, hoje em dia por Renan do Couto, sempre muito bem comentado por Celso Anderson, um cara que consegue ser técnico e didático.

Num Tour desses que estávamos vendo, meus filhos ficaram vidrados na TV. Gostaram da corrida, do cenário, dos castelos e, claro, dos "carro-casa". O "carro-casa" é uma gíria familiar. Conto para vocês: em uma viagem dessas para a Europa, em plena pandemia, as crianças viram muitos motorhomes e deram esse nome, de "carro-casa". Criamos coragem, alugamos um em 2021 e fomos de Lisboa até Santiago de Compostela. Eu brinco que foi o "meu" Caminho de Santiago. Tudo deu certo, pegamos gosto. E estamos fazendo a viagem de "carro-casa" na Olimpíada.

Eu prometi que um dia estaríamos em uma etapa do Tour em um motorhome. Não deu (ainda). Mas é por isso que o 3 de agosto estava marcado na agenda. A prova de ciclismo de estrada era a chance de simular uma etapa do Tour e ainda na França. O problema era: mesmo com o percurso em mãos, como diabos eu faria para estacionar o motorhome e ver os ciclistas passarem? Acreditem, é difícil para caramba.

Ontem, fomos à ginástica de trampolim, conseguimos milagrosamente ingressos e subimos na Torre Eiffel, vimos o pôr-do-Sol, espiamos o vôlei de praia lá de cima, voltamos para o carro-casa mais de meia-noite. E, lá pela 1h da manhã eu saí com o bichão de 7 metros, crianças dormindo no banco todas tortas, Google Maps em uma mão, computador aberto na rota do ciclismo no colo ao lado, saímos em busca de um cantinho na estrada. Minha co-piloto logo dormiu. Então o negócio ficou mesmo desafiador.

Estrada escura, uma descidona. Claro que para os ciclistas, eu sabia, seria uma subidona no dia seguinte. Um aeroporto esquisito de um lado. Árvores do outro. Não dava para parar ali. Surge uma placa. Que no meu parco francês entendi bem: "essa estrada estará fechada entre 8h e 20h no dia 3 de agosto". Caramba! Eu não poderia parar lá em qualquer lugar, como planejava. Ou até poderia, mas não estava nos planos ficar preso até 8 da noite.

Segui, segui, segui. Bem devagarzinho. Cheguei a um cruzamento. A outro. Eu sabia onde estava. Brièvres. Nunca ouviu falar? Eu também não tinha, não. Fui me aproximando devagar, pensando no que poderia fazer. Uma baladinha estava acabando na praça, afinal, sexta à noite é sexta à noite até em Brièvres. Vi um local de estacionamento, sabia que a corrida passaria por ali ou perto dali, encostei, desci para espiar se daria para entrar naquela viela e se meu carrão de 7 metros caberia. Fui a pé e lá estavam os jovens tomando suas biritas da madrugada. Antoine, Valentin e Shaquille (isso mesmo!) eram os rapazes, todos nos seus 25, 26 anos, tomando todas, se divertindo.

Bom, para fazer a história longa curta, vocês sabem como são os bêbados, viramos melhores amigos imediatamente. Ainda mais depois de dizer que era brasileiro. Eles me garantiram que eu podia parar o motorhome ali. Que se tivesse qualquer problema era só ligar para eles. Então, né, vamos lá... fiz a manobra, dormimos. É verdade que por algumas horas o Antoine, o Valentin, o Shaquille e as amigas deles não precisavam ter cantado tantas músicas, incluindo La Marseillaise, com caixinha de som no talo. Mas vamos lá. O forasteiro sou eu! Tem que respeitar.

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O sabadão começou nublado, mas tranquilo. No gramado logo atrás do motorhome, o cenário estava perfeito para um churrasquinho com a grelha pequena e portátil que acompanhou o carro - muito bem equipado, por sinal. Sofri um pouco para acender o fogo, os amigos sabem que não é meu ponto forte. Mas deu certo. A cinco carros de distância, um belga estava devidamente uniformizado, com aquelas roupas de ciclista. Opa, lugar certo! Mas o cidadão estava passando mal e vomitava sem parar, coitado. Veio o policial. Romain, o nome dele. Ficou meu amigo, apesar de ele não falar português e eu arranhar um francês de quinta categoria. Me mostrou no celular por onde andavam os ciclistas, que pedalavam já fazia duas horas. Me pediu para ficar de olho no belga e avisar se qualquer coisa diferente acontecesse. Tré bien. "Combinê". Disse eu.

E lá pelas 3 e meia da tarde ouvimos os helicópteros, vimos a movimentação na rua, concluímos que era hora de ir. Camisas do Brasil vestidas. Bandeira da Lusa em mãos. Lá vamos nós para a D53, a estradinha que ficava a 5 minutos a pé e por onde passariam os ciclistas. Nos posicionamos ao lado de um casal muito simpático de dinamarqueses. Vimos a prova no celular deles. Passaram umas motos da polícia. Um ou outro carro. E... voilá! Lá vem eles! Primeiro, o irlandês que liderava a corrida. Depois, o italiano. Depois, outro irlandês e um cazaque. Um minuto depois, o pelotão subiu a rua perseguindo os caras que haviam escapado. Uau. É verdadeiramente incrível a velocidade, a expressão de cansaço dos líderes, o sangue nos olhos do pelotão. As pedaladas fortes.

O ambiente é extraordinário, é tudo o que eu imaginava. Um monte de bandeiras, gente de todos os lugares do mundo. Incentivo puro, porque as pessoas entendem a importância daquilo. Tem várias pessoas com roupas de ciclismo, vários adultos e crianças que chegaram até lá em suas bicicletas, encostaram de lado no muro de alguma casa e ficaram lá esperando, de capacete e tudo. Ninguém entra na rua, todos sabem as regras, raramente os policiais e voluntários precisam pedir para alguém tomar cuidado.

Depois do pelotão, dobrou a curva à esquerda, em subida, um único ciclista. Achei que depois do pelotão não fosse aparecer ninguém. Mas claro que ia aparecer, várias colinas já tinham sido superadas naquelas quatro horas e meia de prova. Alguns iriam ficar para trás. Ele se aproximou, uniforme verde. Aplausos para o que muitos pensavam que poderias ser o lanterna. E eu vejo ali, escrito no peito. BRASIL.

Era Vinícius Rangel. Não vou fingir que conhecia. Não conhecia. Só sabia que tinha um brasileiro na prova. Eu, minha esposa e meus filhos notamos todos ao mesmo tempo que era o brasileiro que vinha em nossa direção, a poucos metros. "Vai Brasil, vai Brasil!", gritamos todos juntos. Eu notei que ele sorriu. Passou como um raio, mas viu que aquelas camisas amarelas eram dele. Eram nossas. Deu tempo.

Vinícius Rangel pedalou por seis horas, 39 minutos e 31 segundos para concluir a prova em 71o lugar em sua primeira Olimpíada. Foram 77 os ciclistas que concluíram o percurso depois de dar voltas em torno da Sacre-Couer em Montmartre. Dos que largaram, 13 não concluíram. Entre eles, os surpreendentes atletas de Ruanda, Marrocos e Ilhas Maurício, que ousaram disparam na frente no início da prova, apareceram na TV e depois, claro, não aguentaram.

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Eu não sei qual a história do Vinícius, mas tenho certeza que é uma história extraordinária de superação, de perseverança, de muito amor pelo esporte. Lá em 2004, quando eu estava em Paris trabalhando durante o Tour de France e, depois, nos Jogos de Atenas, eu brincava com os amigos chamando de "papel" essas participações brasileiras. Papelões. Hoje, não consigo mais rir de ninguém. O que esses atletas fazem é muito, muito grande. Mas muito mesmo. E, se você não acha, vá lá pedalar por seis horas, ladeira abaixo e acima.

Não, ele não é melhor que o belga que ganhou o ouro, que os franceses que levaram as outras medalhas, que o esloveno que ganha todos os Tours de France e resolveu não disputar a Olimpíada. Mas e daí?

Depois de passar Vinícius, os torcedores holandeses e belgas do outro lado da rua socaram o ar, cerraram os punhos em nossa direção. "Brasil, Brasil!". Riram. Uma zoeira mais do que sadia. Divertidíssima. Tudo muito para cima, tudo muito coletivo, tudo muito "tamo junto". Meus filhos adoraram ver o líder, o segundo, o pelotão e o Vinícius. Eu também. Foram muitos e muitos dias de planejamento para alguns poucos minutos de diversão. Voltamos para nosso churrasco na praça. Vamos tomar banho economizando água. A bandeira da Lusa, eu coloquei na cadeira. A camisa do Brasil eu tirei, porque as abelhas não paravam de procurar o amarelo. E tudo valeu a pena.

Até breve, Brièvres. Ou até nunca mais, possivelmente. Não esqueceremos. E nem o Vinícius.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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