Julio Gomes

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OpiniãoEsporte

'Senna' reforça vitimismo e perde chance de mostrar o melhor Ayrton

Eu ouso dizer que Ayrton Senna é o maior esportista que o Brasil já teve - para a maioria dos brasileiros. O que é, por si só, um erro de avaliação incrível. Não há como colocar ninguém nem perto de Pelé, no meu humilde ponto de vista. Pelé e o futebol são nosso documento de identidade. É o esporte mais global e seguido, tivemos o atleta que fez com o mundo soubesse onde ficava o Brasil no mapa, é o tema que permeia o primeiro diálogo de qualquer brasileiro com qualquer pessoa de outro lugar do mundo. E ainda assim somente meia dúzia de gatos pingados foram ao enterro do Rei do Futebol. Isso fala sobre nós, não sobre Pelé.

E por que Senna seja, provavelmente, maior do que Pelé por aqui? Porque Senna compunha um combo de características que marcam o nosso povo como sociedade. E, perdão pela sinceridade, várias delas não são muito do meu gosto. Justamente estas características, capitaneadas pelo vitimismo, são reforçadas e enfatizadas da série "Senna", da Netflix. Enquanto outras, as que eu acho as melhores, ficaram em segundo plano. Ou terceiro.

A produção é espetacular tecnicamente. As cenas de corrida são incríveis, os atores e atrizes são de grande qualidade, fantasticamente similares aos protagonistas da vida real. A divulgação está sendo muito bem feita e creio que a série fará parte de um grupo importante de documentos que retratarão, todos juntos, quem foi Ayrton Senna. É daquelas que "tem que ver".

"Senna" capta algo real. Ayrton achava-se perseguido em todas as esferas. Na pista e fora dela. Ninguém está inventando nada. Que isso esteja tão presente na série tem a ver com o que chegou até os produtores da mesma. É uma pena, no entanto, que feitos épicos, como por exemplo a conquista do tricampeonato com um carro muito inferior ao do principal concorrente, tenham menos peso.

Quem foi Ayrton Senna, afinal?

Para mim, o piloto mais rápido de todos os tempos. Isso bastaria. Outros podem ter sido mais completos. Ou mais vencedores. A série, aliás, mostra de forma interessante a crítica de Alain Prost e como o universo da Fórmula 1 considerava mesmo que Senna forçava demais o carro em algumas situações. Perdia corridas que poderia não ter perdido. Mas este é um debate técnico e que pode durar horas e horas. Entra nele o gosto pelo estilo de pilotagem. Porém, ser o mais rápido da história em um esporte em que o que vale é chegar primeiro não é um elogio qualquer. Não é algo menor.

Eu tinha 5 anos quando Senna estreou na Fórmula 1, e o Brasil tinha nas pistas um bicampeão do mundo (Nelson Piquet). Falava-se muito de Fórmula 1, vivia-se muito a Fórmula 1, pelo menos dentro de casa e no nosso círculo de amigos. Não é verdade que Senna tenha ocupado um vácuo de falta de ídolos e vitórias no futebol. Esta é, na minha opinião, uma gigantesca ladainha que alguém jogou no ar anos atrás e ganhou um corpo indevido. Ninguém largou o futebol por causa de Senna, como não largou por causa de Gustavo Kuerten - e olha que nos grandes anos de Guga nosso futebol entrava, aí sim de verdade, em um declínio histórico.

Nos tempos de Senna, já falava-se muito de Fórmula 1. As corridas eram transmitidas por várias emissoras de rádio, muitos jornais enviavam repórteres para a cobertura das corridas, havia revistas de automobilismo nas bancas, com pôsteres dos pilotos principais ao estilo "foto do time campeão perfilado". É claro que o interesse e as coberturas aumentaram nos anos dos títulos de Senna, no auge. Mas todo mundo continuava seguindo normalmente o futebol, torcendo por seus clubes, havia grandes ídolos por aqui, a seleção de 86 era ótima, em 89 o Brasil ganhou a Copa América depois de trocentos anos, em 92 e 93 o São Paulo foi campeão mundial, o Palmeiras saiu da fila, o Corinthians ganhou o Brasileiro pela primeira vez, o Vasco e o Flamengo também foram campeões nacionais... tudo certo. É balela que a idolatria por Senna tenha contrastado com um suposto desinteresse pelo futebol.

O brasileiro sempre amou carros, tem um certo fetiche do macho nacional, como há também em outros lugares do mundo. E muita gente se encantava pela maneira arrojada de Senna pilotar, inclusive este que escreve aqui, apenas uma criança na época. A quantidade de pole positions que Senna acumulou na carreira, em uma época de carros mais parecidos tecnicamente, correndo contra adversários de peso, é, por si só, a marca que deixa claro quão rápido ele era. A uma volta, praticamente imbatível.

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Nas corridas, era um cara arrojado, às vezes até inconsequente. Na chuva, era um negócio brutal. Galvão Bueno, além de um enorme narrador, era amigo pessoal de Senna. Reginaldo Leme, além de um enorme comentarista, era também um repórter que passava o dia inteiro no paddock apurando informações. Então as transmissões da era Senna, além de ótimas e, sim, torcedoras, eram informativas. Quando Galvão falava sobre "chegar é uma coisa, passar é outra" ou falava da resposta de Senna com melhores voltas quando alguém estava se aproximando, ele não estava opinando ali, mas dando informações importantes sobre como agia e pensava o piloto. Nós sabíamos o que era Senna e como funcionava a F1 através das vozes de Galvão e Reginaldo - coisa que, diga-se, a série também retrata muito bem (apenas a jornalista mezzo inglesa, mezzo brasileira, colocada na trama para "simbolizar" a imprensa mundial - que não simboliza coisa nenhuma - que é uma forçação de barra do roteiro).

Mas voltando a Senna. O piloto que eu com 8, 9, 10, 11 anos amava de paixão era um baita de um piloto, rápido para caramba, vencedor, competidor, genial às vezes. E algumas dessas coisas acabam ficando muito em segundo plano na série. A capacidade técnica, a velocidade em voltas rápidas, a ruptura física que ele representou na categoria - Senna tinha um "personal trainer", uma obviedade de qualquer esporte hoje, mas não na época - cuidava do corpo como quase nenhum piloto fazia. Também ficamos sem ver alguns momentos épicos, ultrapassagens que fez e sofreu, a volta histórica e surreal da corrida em Donington Park, em 1993.

Por outro lado, o que sobraram foram teorias conspiratórias. O vitimismo. Que foi o que fez com que eu me afastasse de Senna como torcedor à época. Essa coisa forçada do "contra tudo e contra todos".

Imaginem só se havia hooligans nas arquibancadas xingando Senna na F3 Inglesa. Conspiração para ele perder no kart, na F3, na Fórmula 1, dentro da McLaren, até mesmo "irregularidades eletrônicas" da equipe Benetton foram jogadas ao ar, coisa que nunca foi provada e que só veio à tona depois da morte de Senna. Conseguiram fazer o maior erro da carreira de Senna, o acidente em Mônaco-88, quando ele liderava com folga e corria de forma alucinada para dar uma volta (e humilhar) Prost, parecer culpa de outro. Na série, Senna "diz" à irmã que havia atingido outra dimensão, como se pilotasse em um transe, e o aviso de Ron Dennis, então chefe da McLaren, para que tirasse um pouco pé tivesse sido o responsável pelo erro juvenil na curva que antecede o túnel.

Este, no meu ponto de vista, era uma característica marcante de Senna e que combina perfeitamente com o povo brasileiro. Por aqui, ninguém erra. Ninguém perde. Ninguém é incompetente. É sempre culpa do outro, é sempre culpa do juiz, do chefe, da professora, do estagiário, do político, do cunhado, do vizinho. Todo o fracasso do dia a dia do brasileiro é imputado a terceiros. Ou então, porque Deus quis. Outra característica de Senna, aliás, que soava como música aos ouvidos nacionais - a religiosidade.

Senna era um fantástico piloto. Que sempre que perdia colocava a culpa em outras pessoas. Isso era muito irritante para mim. Mas isso gerava uma empatia tremenda por parte da nação.

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Creio que na tentativa de humanizar o mito, a série dá um espaço tremendo para isso, dando voz a um sentimento que ecoa e que possivelmente seja a visão real da família. E dá espaço de menos para os feitos esportivos espetaculares que aquele rapaz conseguiu. Vale ser vista? Sem dúvida alguma. Eu gostei de conectar momentos que vi na série com momentos da minha vida. Eu me lembro onde estava e com quem vi tal corrida, coisas do tipo. Mas é uma série mais no estilo "novela" do que um documento jornalístico. Ter isso em conta é importante para evitar desapontamentos.

Opinião

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