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"Tragédia de Hillsborough" completa 31 anos, e é lição ao esporte em crise

15/04/2020 10h15

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As regras no esporte mudam por diferentes razões. Para citar alguns exemplos, pela evolução física dos atletas; pela inovação tecnológica; para aprimorar a competitividade; e também por conta de uma tragédia. A pandemia do coronavírus está mudando o esporte, e o direito. Assim como a tragédia do dia 15 de abril de 1989 mudou as regras do futebol na Inglaterra.

15 de abril de 1989, um dos dias mais tristes do futebol mundial.

A "tragédia de Hillsborough" matou 96 pessoas, além de ferir outras centenas, e mudou não só as regras do esporte no país, como também o direito britânico.

Nesses dias em que o mundo se vê diante de algo inimaginável, buscando soluções, é importante lembrar como o futebol inglês reagiu diante dessa tragédia nacional.

No fim do ano passado, o ex-superintendente-chefe da polícia de South Yorkshirena, David Duckenfield, foi considerado inocente do homicídio culposo de 95 torcedores no desastre de 1989, no jogo entre Liverpool e Nottinghan Forest. O julgamento não tratou das 96 vítimas fatais porque a 96ª vítima morreu apenas em 1993, e a lei da época determinava a impossibilidade de apresentar denúncias criminais se a morte da pessoa tiver ocorrido mais de um ano e um dia depois das ações que supostamente a causaram.

Mas, então, quem foi o responsável pela maior tragédia do esporte inglês?

O Julgamento

Para que uma pessoa seja considerada culpada por homicídio culposo por negligência grave, a promotoria deve provar que ele - ou ela - tinha um dever de cuidado com a vítima, e o violou por negligência. Também deve ser provado que o réu deveria ter previsto que a violação em análise levaria a um risco óbvio de morte, e comprovar o nexo entre esse erro de comportamento e a morte. E, mais: a promotoria deve também comprovar que as circunstâncias da violação são tão evidentes que tornam a negligência grave, o que exige uma sanção criminal.

Ou seja, a tarefa da promotoria é sempre complicada.

No caso, a promotoria acusava Duckenfield de ter falhado em identificar os riscos nos túneis de Hillsborough, como também de monitorar o número de pessoas esperando para entrar, e que todos os erros c comprovavam "uma grave negligência" do ex-policial.

A defesa de Duckenfield colocou outros fatores na discussão. Apontou fragilidades históricas do estádio de Hillsborough, decisões equivocadas de alguns policiais, e a própria inexperiência (ele estava na chefia da polícia havia apenas 19 dias).

Mas um problema formal apareceu.

Duckenfield chegou a admitir que cometeu falhas que determinaram a morte de 96 pessoas, entre homens, mulheres e crianças. Acontece que a defesa do policial alegou que a confissão foi "tirada de contexto". O juiz acatou a tese, e, então, disse ao júri que essa prova irrelevante, uma vez que as "regras e procedimentos de inquéritos são diferentes das de um julgamento criminal".

Sem a "confissão" do inquérito, a tarefa da promotoria ficou ainda mais complicada. O advogado do ex-policial voltou a alegar que torcedores do Liverpool haviam realmente chegado atrasados à partida, que muitos não tinham ingressos e haviam bebido, que tentaram forçar a entrada em Hillsborough e não seguiram as orientações da polícia. A narrativa da vítima como culpada foi ressuscitada, algo que que já tinha sido enterrado pelos ingleses.

Em 2012 um relatório independente comprovou que os torcedores não foram os responsáveis pela tragédia. O trabalho muito bem apurado, gerou um relatório que foi decisivo para um pedido de desculpas do governo britânico. Depois disso, um inquérito realizado em Warrington confirmou as descobertas desse relatório e determinou mais uma vez que os torcedores não tiveram nenhuma responsabilidade pelas mortes, e que a responsável teria sido a polícia, em um comportamento negligente. Esses estudos abriram as portas para as acusações criminais.

Tão logo saiu a decisão da absolvição, o Liverpool FC emitiu nota dizendo que compartilhou "as reações e frustrações das famílias hoje, e das pessoas afetadas pela tragédia de Hillsborough". Familiares e torcedores também ficaram chocados.

A semifinal da FA Cup entre Liverpool e Nottingham Forest na cidade de Sheffield, no dia 15 de abril de 1989 no Estádio Hillsborough provocou 96 mortes e 766 pessoas ficaram feridas. A maior tragédia da história do esporte britânico também provocou mudanças.

Regras de segurança mais rígidas, mudança na orientação das transmissões dos jogos, novo entendimento jurídico sobre danos psicológicos para vítimas secundárias de tragédias. Tudo por causa de uma avalanche de ações propostas após o jogo entre Liverpool e Nottinghan Forest.

Mudanças pós-Hillsborough

A partir da tragédia, o futebol precisou mudar na Inglaterra.

Regras de segurança mais robustas foram determinadas para os estádios ingleses, que acabaram com o uso de cercas de proteção/alambrados entre torcedores e campo. Também passou a ser proibido lugares destinados a torcedores que ficavam em pé. e todos passaram a ter assentos em todos os setores dos estádios dos times da primeira e segunda divisão do futebol inglês.

Hillsborough também mudou a linguagem da transmissão esportiva por vídeo. No dia da tragédia, o canal de televisão que transmitia mostrou imagens de vários torcedores em sofrimento, enquanto eram esmagados. Vários familiares testemunharam ao vivo a morte das vítimas. Agora, quando ocorre um acidente, imagens que possam causar danos psicológicos aos telespectadores, como no caso de sangramentos, são evitadas pelas transmissoras.

O direito também mudou depois que vários familiares buscaram compensação na Justiça. Na Inglaterra, como explica o colunista do Lei em Campo e advogado em Londres, Luiz GG Costa, "o ressarcimento em casos dessa natureza tem caráter compensatório (e não indenizatório), ou seja, visa colocar a vítima em situação em que ela estaria caso o evento não tivesse ocorrido. Na Inglaterra não existem danos morais da forma como comporta o direito brasileiro. Danos psicológicos ou psiquiátricos precisam ser comprovados (por perícia médica) para figurar como elemento da compensação".

Estudos médicos realizados no Reino Unido comprovaram que a ocorrência de danos psicológicos ou psiquiátricos é mais facilmente observada em vítimas primárias, ou seja, as que sofrem diretamente o risco de perigo ou a dor de lesões. Quando a vítima é secundária (aquela que testemunha um evento durante o qual um terceiro se machuca), torna-se mais difícil a comprovação desse tipo de dano. Assim, para evitar uma avalanche de pedidos de vítimas secundárias, o Judiciário inglês passou a distinguir casos pelo grau de proximidade entre as vítimas primárias e secundárias: quanto mais próximo o relacionamento das vítimas, mais apropriada se torna a compensação de vítimas secundárias.

Nesse sentido, quando vítimas secundárias da tragédia de Hillsborough impetraram ações contra a polícia de South Yorkshire, "o Judiciário decidiu adotar o mecanismo de controle acima exposto para evitar criar precedente jurídico contrário ao interesse público, limitando assim o número de compensações concedidas em decorrência de tais ações", conta Luiz Costa.

O direito, o jogo, a segurança do torcedor. Uma tragédia também é um instrumento de transformações do esporte.

Com a absolvição do chefe de polícia à época, o caso voltou a discussão. Uma história de mais de 30 anos, dolorida, pesada e necessariamente inesquecível. Relembrá-la, até para entender os desdobramentos no campo jurídico e esportivo, é sempre importante.

E uma nova pergunta surge depois do julgamento da semana passada: se o chefe à época da polícia, David Duckenfield, não foi o culpado de "homicídio por grave negligência", então quem foi?

Uma tragédia que matou 96 pessoas precisa de respostas.

Trinta e um anos depois, Hillsborough já sabe que de toda situação extrema surgem ideias, soluções, que vem do diálogo, bom senso, e responsabilidade.

Em uma situação excepcional, não se encontram soluções convencionais.

Sairemos dessa crise, venceremos o coronavírus, e nosso jogo, nossas regras, e até nosso direito sairão diferentes, maiores, fortalecidos e diferentes.

Como foi na Inglaterra depois dessa tragédia que hoje completa 31 anos.

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