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O papel da Justiça Desportiva na proteção da ordem e dos direitos humanos

Vida e esporte caminham lado a lado. Em busca de estabilidade e segurança, elas têm uma mesma companheira, a Justiça. O desafio de se criar e se manter instâncias legítimas, comprometidas com regras, direitos, devido processo legal, direitos humanos e a ordem (esportiva e social) é permanente.

Independente por força constitucional, como traz o art 217, a Justiça Desportiva no Brasil ganhou um protagonismo no Brasil que é único no mundo. Entender a sua importância, responsabilidade e o necessário diálogo permanente com o direito é fundamental até para proteger a autonomia que ganhou do legislador constitucional.

Mas a nossa Justiça Desportiva, do jeito que está formada hoje, está ganhando legitimidade? Ela está preparada e tem a formação técnica necessária para proteger um patrimônio cultural do Brasil e uma atividade econômica gigante? As pessoas reconhecem a independência e a legitimidade dessa Justiça?

Estou relendo a obra do amigo Andre Galdeano, Justiça Desportiva, muito além do julgamento por mero esporte, que tive a honra de escrever uma apresentação. Já no título, um jogo de palavras inteligente para tocar no cerne das páginas: a justiça desportiva não pode ser amadora.

A Justiça Desportiva não só é a palavra final do movimento jurídico do esporte, a instância-mor da lex sportiva no Brasil, como também suas decisões servem para consolidar e proteger a necessária autonomia jurídica desse movimento transnacional.

Entender o papel dessa Justiça privada é também entender a necessidade de melhorar. De criar mecanismos que reforcem sua independência, valorizem seus representantes e mudem o imaginário coletivo.

O TAS - Tribunal Arbitral do Esporte, última instância internacional da justiça desportiva mundial - tem tomado esse caminho, refletindo sobre questões de proteção de direitos humanos indo muito além das regras esportivas, analisando documentos e jurisprudência estatais a fim de proteger a essência do exporte e a própria autonomia desse movimento jurídico privado.

Tanto na esfera internacional, quanto nas bandas de cá, entender o papel da justiça desportiva como guardiã da ordem desportiva, mas também de direitos inegociáveis, tem sido um dos grandes desafios recentes desse movimento. E ele tem caminhado num ritmo próprio, mas avança. E esse avanço passa por pressão externa e pela profissionalização de quem é operador dessa área tão importante.

E ela precisa saber a força que tem com o direito.

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E aqui, trago aqui uma parte do texto que escrevi a convite do Marcelo Carvalho sobre o papel da Justiça Desportiva no combate ao preconceito no esporte, incluído no relatório do Observatório da Discriminação Racial no Futebol de 2022.

A força coercitiva do direito

O direito estabelece regras que estimulam as condutas desejáveis e combatem as indesejáveis. Para isso, existem as premiações e punições, que funcionam como poder coercitivo para mudar culturas e comportamentos.

Para o pensador alemão Rudolf Von Ihering, a força tem um significado de destaque para o direito. O pensador concebia uma "identidade genética" entre coerção e Direito, em que aquela é matriz desta. Escreve Ihering:

"A força atinge o direito não como a algo que lhe fosse alienígena, que devesse tomar de empréstimo de fora, do senso de direito, e também não como a algo mais elevado a que devesse se submeter, sentindo sua inferioridade. Reversamente, a força faz nascer o direito de si mesma, como medida de si própria - o direito como política da força."

Agora, para se tornar efetivo e fazer valer esse poder coercitivo, as regras precisam ser efetivas, ou seja, aplicadas. Dentro desse processo interpretativo, entender a importância de direitos humanos se faz fundamental.

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A política universal de Direitos Humanos

O processo de construção de uma política global de Direitos Humanos começa a ganhar força com a Revolução Francesa e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, que tinha como cerne os princípios de liberdade e igualdade para os homens.

Mas foi depois das atrocidades da Segunda Guerra Mundial e a consequente criação da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1945, que surgem órgãos e instâncias internacionais voltadas à proteção dos Direitos Humanos.

O principal avanço ocorre com a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) em 1948, que estabelece o caráter universal desses direitos.

Depois disso, com o surgimento de um Sistema Internacional de Proteção a Direitos Humanos, vários tratados e convenções internacionais que atacam a discriminação por cor, raça, credo, religião, sexo, orientação sexual foram celebrados e ratificados por centenas de países, inclusive o Brasil.

Ou seja, eles foram internalizados pelo país, ganhando força de lei.

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Em 2005, a Resolução A/60/L.1 da ONU seguia na linha de colocar o esporte como promotor de paz e desenvolvimento. E, claro, como vetor de integração social. Os chefes de Estado, através da ONU, reafirmaram ali seu compromisso na construção e manutenção da paz e do respeito aos Direitos Humanos.

Dessa forma, a Resolução traz o esporte como uma das mais valorizadas medidas a serem promovidas pelos países membros das Nações Unidas:

Salientamos que o desporto pode ajudar a promover a paz e o desenvolvimento e contribuir para um clima de tolerância e compreensão, e incentivamos o debate de propostas conducentes a um plano de acção sobre desporto e desenvolvimento na Assembleia Geral.

Por fim, é importante trazer dentro dessa reflexão a ideia do pensador Inmanuel Kant, que muitos entendem como a formulação mais consistente e complexa da natureza do homem e suas relações. Kant afirma que o homem é o fim em si mesmo, sendo assim, dispõe de uma dignidade ontológica e o Direito e o Estado devem se propor ao benefício dos indivíduos. Desde o século XX, no pós-Primeira Guerra, somou-se a esse pensamento os direitos sociais e - como visto -, a partir da Segunda Guerra Mundial, a concepção da dignidade da pessoa humana.

O Brasil adotou a dignidade da pessoa humana não só como fundamento que rege e estrutura o Estado Democrático de Direito, mas como verdadeira fonte de interpretação, um paradigma do que se pretende no plano do direito positivo. A ideia foi englobar as proteções como direito fundamental para - dessa forma - proteger os indivíduos contra o arbítrio do Estado.

A Constituição Federal brasileira, em seu art. 1º, prescreve que um dos fundamentos da República Federativa do Brasil é o respeito à dignidade humana. Na reflexão do professor Paulo Feuz, o "Brasil adotou a dignidade da pessoa humana não só como fundamento que rege e estrutura o Estado Democrático de Direito, mas como verdadeira fonte de interpretação, paradigma do que se pretende no plano do direito positivo".

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Com isso, a proteção da dignidade humana passa a ter valor máximo como princípio orientador não apenas da atuação estatal, como também de organismos internacionais ou mesmo nacionais. Ou seja, ela precisa ser base legislativa e interpretativa do direito, inclusive dentro do movimento jurídico privado do esporte.

Voltando ao livro...

No livro, André nos mostra como é possível avançar, com a construção de um Tribunal independente, que crie uma jurisprudência própria e coerente, baseada em padrões interpretativos próprios, crescendo em relevância e importância.

E esse trabalho acadêmico de referência foi possível porque André é alguém que mergulha de maneira apaixonada e atenta nesse universo há décadas, com a humildade e o olhar de quem sabe que é sempre importante aprender. Ele aprende e, de quebra, nos ensina nessa obra.

Ele ensina que estas decisões privadas, ao lado dos princípios gerais de Direito e da proteção de direitos humanos, são pilares para a afirmação da autonomia da ordem desportiva no Brasil de uma maneira séria, responsável e segura.

Isso porque na vida e no esporte, a Justiça é sempre uma aliada.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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