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Coragem, Caso Diarra avisa que é preciso falar sobre abolição no futebol

É preciso falar (mais) do "Caso Diarra ". O Brasil não tem dado a atenção que o episódio merece, nem tem discutido o assunto com a profundidade e atenção necessárias. O mundo não. Ele anda discutindo, refletindo e chegando a uma conclusão: a revolução que libertará o trabalhador da bola começou e é inevitável.

Dois textos me fizeram refletir mais sobre o episódio que deve mudar a relação de trabalho no futebol

Um deles da presidente do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo Rosalia Ortega que, em entrevista ao jornal espanhol Diário de Notícias, afirmou que "os jogadores são reféns de cláusulas de rescisão. Deveriam lutar pela abolição".

Outro texto é do pesquisador francês Antoine Duval, especialista em direito e esporte, que entende que o caso do jogador francês pode ser tão importante quanto do caso Bosman - uma marco no direito desportivo - "porque a decisão Diarra marca uma reviravolta crucial para o futebol, sua economia e até mesmo sua identidade."

Essas leituras me fizeram refletir sobre algo pouco falado, o futebol nunca viu o atleta como um ser dotado de direitos, mas como elemento vital para um negócio.

Foi assim desde o início, lá no século XIX, quando o jogo da elite inglesa se tornou negócio e aos poucos as classes mais populares foram ocupando um espaço delimitado por quem nunca perdeu o controle do futebol.

Foi assim após o Caso Bosman, quando depois de uma decisão judicial baseada no direito de circulação de trabalhadores, o absurdo do passe acabou no futebol.

Mas a liberdade não foi completa. O futebol, mais uma vez, para proteger clubes e o negócio criou mecanismos que fazem com que se possa dizer que a abolição dos atletas ainda não é completa.

O paralelo Bosman - Diarra

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Em 1990, Bosman tinha 26 anos quando o contrato dele com o Liège chegou ao fim. O clube belga fez uma proposta de renovação, mas com uma redução grande de salário. O jogador não aceitou e tentou ir para o Dunkerque, da França. O negócio não evoluiu porque, mesmo sem contrato em vigor, o Liège exigiu um valor para liberar Bosman e o clube francês não tinha como pagar.

Bosman ficou preso.

O clube que tinha o passe não renovou o contrato e ele não pode ir para outro clube. Ficou refém de um clube sem receber. Uma escravidão profissional.

Para ter liberdade de trabalhar, comprou uma briga judicial gigante: contra todo o sistema associativo do futebol. A luta não era apenas contra a federação belga, mas também contra UEFA e FIFA.

Advogados do atleta entraram com uma ação na Corte Europeia de Justiça, que fica em Luxemburgo, solicitando liberação, tendo como base o Tratado de Roma, que explicitava o direito do trabalhador à livre circulação na Europa.

No dia 15 de dezembro de 1995, o Tribunal Europeu aceitou o pedido de Bosman. O Tribunal entendeu que o Tratado de Roma é aplicado ao futebol. Ou seja, a lex publica, nesse entrelaçamento com a lex sportiva, se sobrepôs.

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A decisão detonou uma regra básica das relações entre atletas e agremiações na União Europeia, uma espécie de superação sem fronteiras: terminado o contrato, o jogador estava livre para trabalhar em outro clube.

Ou seja, o jogador de futebol passou a ter o direito de circular livremente pela Europa, sem ser mais "mera mercadoria".

O "Caso Bosman" transformou o futebol europeu e sua essência se espalhou pelo mundo.

Três anos depois da decisão, no Brasil foi promulgada a Lei 9.615, a Lei Pelé, que, entre outras coisas, acabou com o "passe".

Para muitos, foi o fim do "trabalho escravo" no futebol brasileiro.

Será?

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Como consequencia da decisão, pensando na economia do jogo e na proteção dos clubes que perderam a receita da venda do passe do atleta, a FIFA estipulou as "cláusulas compensatórias" em casos de rescisão de contrato sem justa causa.

Clubes passaram a fazer contratos mais longos para receber compensação econômica pela rescisão antecipada de contrato. Só no futebol que um contrato é feito para não ser cumprido. O ideal é que ele seja rompido e o clube indenizado.

Além de garantir a economia dos clubes, contratos longos e multas davam mais estabilidade ao contrato de trabalho no futebol, preservando equilíbrio competitivo.

A decisão de Diarra coloca esse sistema em xeque.

O que está em jogo?

Já escrevi aqui sobre o Caso Diarra, quero agora avançar nessas consequencias e na liberdade de trabalho de quem vive do esporte.

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Me parece evidente que a adoção do Regulamento de Status e Transferência da FIFA nunca foi para fortalecer a estabilidade dos contratos, mas para garantir a economia do negócio.

Como escreve Duval "sua função principal era criar tantos riscos financeiros e esportivos para os jogadores (e seus novos clubes) para transformar seus contratos em ativos valiosos sobre os quais se poderia especular como se fossem propriedades."

Ou seja, a abolição de Bosman não foi completa.

Foi exatamente esse mecanismo do futebol que a decisão do Caso Diarra derrubou. Afinal, como uma entidade privada conseguia com um regulamento privado impedir a livre circulação de trabalhadores e a garantia de direitos humanos?

Qual outra profissão tem essa limitação ao trabalho?

Duval vai além e entende que "esse mercado transnacional era uma fonte regular de abusos para jogadores (se você olhar além do um por cento da elite da bola), tráfico de crianças, corrupção e evasão fiscal. Não era uma construção institucional que deveríamos celebrar e querer proteger. Derrubar esse mercado é em si um feito enorme, que afeta profundamente como vivenciaremos o futebol e perceberemos os jogadores no futuro. Não mais como bens que os clubes devem comprar a um preço baixo e vender a um preço alto, mas como humanos em quem um clube deve investir para mantê-los trabalhadores felizes."

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Aqui, a questão central dessa breve reflexão: a justiça europeia lembrou que o jogador é um trabalhador e tem direitos que precisam ser respeitados.

O futebol sempre olhou para o empregador.

Trecho do acórdão do caso Lassana Diarra sobre a falta de possibilidade da FIFA impedir transferência de um atleta para outro clube, vetando "a possibilidade de interdição de transferência, inscrição por um novo clube contratante de um jogador, por este não ter quitado solidariamente os valores da cláusula indenizatória do vínculo contratual anterior extinto".

Ou seja, o Tribunal entende que a FIFA não pode limitar a circulação de trabalhador, nem impedir acesso ao trabalho de um empregado da bola.

Os dois princípios estão garantidos na Carta de Direito Fundamentais da União Europeia (CDFUE), como também na Constituição da Organização Internacional do Trabalho (OIT), na Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) e no art. 6o do Pacto Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), ambos vinculados à Organização das Nações Unidas (ONU).

No Brasil, também se poderia buscar esses princípios na Constituição Federal e em Tratados Internacionais, como o art. 6.1 da Convenção Americana de Direito Humanos (CADH). "Ninguém pode ser submetido a escravidão ou a servidão, e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as suas formas".

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E não é que o Tribunal seja contra o sistema do futebol. Nada disso. Ele sempre foi a favor da solidariedade, equilíbrio competitivo, abertura de competições, estabilidade de equipes, incentivo a formação, etc.... Mas ele não pode fechar os olhos para absurdos.

Quando o sistema do futebol e suas organizações milionárias esquecem esses ideias, cuidando e atendendo unicamente a elite do esporte e valorizando um mercado especulativo, aparecem decisões como essa e do Caso Superliga (liberdade econômica e concorrencial).

E agora?

A imunidade da Fifa está sendo questionada e a governança da FIFA precisará refletir e agir. A decisão mexe com o sistema de transferência enraizado do futebol, afetando a transferência de atletas e diretamente o mecanismo de sanção da FIFA.

A FIFA mais uma vez vai tentar encontrar um caminho - assim como fez depois do Caso Bosman - para proteger a economia dos clubes e preservar estabilidade contratual, mas terá que respeitar direitos garantidos dos trabalhadores da bola.

O futebol terá de encontrar um caminho de solidariedade transnacional entre ligas e clubes para manter o equilíbrio competitivo e a estabilidade contratual, além de buscar e desenvolver um planejamento para remunerar clubes pequenos e formadores a partir da alta soma de dinheiro que a elite do futebol arrecada.

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Não se pode entender a decisão como contrária ao sistema do futebol, mas como um alerta sobre como direito e esporte não se afastam. No momento em que o esporte, em nome de uma autonomia, esquece o direito, a própria autonomia se vê fragilizada por uma decisão estatal.

E em pleno século XXI não podemos imaginar um esporte que o mundo aplaude e consome ainda se valendo de regras privadas que tiram direitos de quem trabalha.

A escravidão acabou. Faz tempo. Ainda bem.

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