Copa na Arábia Saudita é mais uma derrota dos direitos humanos no futebol
Longe de ser uma surpresa, mesmo assim também não deixa de incomodar. O anúncio da Copa do Mundo de 2034 na Arábia Saudita feito por Gianni Infantino confirma uma lógica do futebol que ele mesmo tem vergonha e tenta esconder: direitos humanos não são compromissos institucionais, mas estratégias de lavagem de imagem. E ele não se furta nem mesmo de buscar um relatório enganador para justificar suas escolhas.
Por mais que se entenda que o futebol também é um negócio, a Copa do Mundo na Arábia Saudita ainda é algo difícil de engolir. Agora, como que a Fifa teria um relatório sobre direitos humanos que aprova a Copa do país? A resposta é uma vergonha para o futebol.
Claro que a "avaliação independente" da AS&H Clifford Chance contratada pela Federação Saudita para analisar a situação do país em relação a direitos humanos sempre me pareceu suspeita. Mas 11 coletivos internacionais de direitos humanos - entre eles a Football Supporters Europe, a Anistia Internacional e a Human Rights Watch - resolveram ir além, checar a fundo o relatório e cobrar mais transparência.
O que eles apresentaram é de corar até cara de pau.
Além de críticas à Fifa e à Arábia Saudita, uma crítica pesada das entidades foi direcionada ao escritório AS&H Clifford Chance. As entidades pediram mais informações ao escritório e cobraram transparência na pesquisa feita.
O escritório sempre destacou que trabalhou em parceria com "algumas das principais ONGs e organizações da sociedade civil do mundo" para produzir o relatório, mas que entende ser "inapropriado" oferecer qualquer comentário adicional sobre ele. Ele apenas compartilhou um link para políticas da empresa disponíveis publicamente.
"Está claro há mais de um ano que a Fifa está determinada a remover todos os obstáculos potenciais para garantir que possa entregar ao príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, a Copa do Mundo de 2034 ", disse James Lynch, codiretor da organização de direitos humanos FairSquare , que liderou a abordagem conjunta ao escritório de advocacia.
"Ao produzir um relatório chocantemente ruim, a AS&H Clifford Chance, parte de um dos maiores escritórios de advocacia do mundo que traz muito de sua expertise em direitos humanos, ajudou a remover um obstáculo final fundamental", disse Lynch.
Fifa e Direitos Humanos
Para entender, a Fifa tem compromisso estatutário com a defesa de direitos humanos. Inclusive, forçada pelo escândalo do FIFAGate em 2015, elaborou uma política interna de direitos humanos em 2017.
A entidade buscava Fifa tomar medidas para retomar a sua credibilidade, buscando promover maior democracia, transparência e accountability, tendo a promoção de direitos humanos e sua proteção como um pilar importante.
Além disso, colocou como critério para a habilitação de país-sede compromisso com direitos humanos. Portanto, para atender aos requisitos de candidatura da FIFA para a Copa do Mundo, a FA Saudita teve que contratar um escritório independente para fornecer uma visão geral dos riscos de direitos humanos no país - para que uma estratégia pudesse ser desenvolvida para gerenciá-los
Várias empresas recusaram. A AS&H Clifford Chance concordou.
Acontece que para essa avaliação a Fifa e a Federação Saudita limitaram o escopo de análise, contrariando as próprias regras da entidade-mor do futebol sobre o que deveria ser analisado. Muitos direitos que a Arábia Saudita não reconhece em tratados internacionais foram esquecidos na análise, como um olhar para a liberdade de expressão, discriminação LGBTQIA+, trabalho forçado de operários e proibições sindicais?
Ou seja, a AS&H Clifford Chance não usou avaliações necessárias de órgãos respeitados de direitos humanos da ONU, ignorando o histórico da Arábia Saudita em tortura e abuso sexual, bem como uma importante denúncia de trabalho forçado da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
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Quero receberA Arábia Saudita
A Arábia Saudita é um país que não respeita a proteção internacional de direitos humanos. Segundo a Anistia Internacional, o país pratica uma repressão implacável contra ativistas pacíficos, jornalistas e acadêmicos.
O já terrível histórico de direitos humanos da Arábia Saudita piorou sob o governo de fato do príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, que presidiu um número crescente de execuções em massa, tortura , desaparecimento forçado , severas restrições à liberdade de expressão , repressão dos direitos das mulheres sob o sistema de tutela masculina , discriminação LGBTI+ e o assassinato de centenas de migrantes na fronteira entre a Arábia Saudita e o Iêmen . O sistema abusivo de Kafala (patrocínio trabalhista) do país, bem como a proibição de sindicatos e a falta de aplicação das leis trabalhistas continuam a levar à exploração generalizada de trabalhadores migrantes.
No relatório divulgado no final de outubro, as entidades de DH entendem que "há o risco de que a empresa" contratada para chancelar a Copa "possa ser vinculada" a potenciais impactos adversos aos direitos humanos resultantes de um torneio sediado na Arábia Saudita.
Esporte como máquina de lavar imagem
Claro que um país como a Arábia Saudita, assim como recentemente o Qatar e a Rússia, usam de eventos esportivos para tentar melhorar sua imagem internacional. É o que se passou a chamar de Sportswashing.
O Sportwashing é uma estratégia de marketing que utiliza o esporte para reposicionar a imagem de uma marca, produto ou país. Uma estratégia antiga, usada por Adolf Hitler nos Jogos Olímpicos de 1936 para propagar a ideologia nazista, por exemplo.
A Arábia Saudita faz o papel dela, mas a Fifa entrar nessa que nos leva a uma reflexão necessária. A entidade realmente leva a sério a política de direitos humanos que tem?
Ao levar o Mundial para o país asiático, a entidade esquece direitos universais e também a própria política interna da entidade, que traz no Estatuto a proteção de direitos humanos
Riscos
Além de violar a própria política interna de direitos humanos e ignorar direitos universalmente protegidos, a Fifa - mais uma vez - será conivente com um evento gigantesco como palco para uma série de crimes universais.
"Os riscos severos de sediar a Copa do Mundo de 2034 na Arábia Saudita são claros e bem conhecidos - sem grandes reformas, os críticos serão presos, mulheres e pessoas LGBT enfrentarão discriminação, e os trabalhadores serão explorados em grande escala", disse Steve Cockburn, Chefe de Direitos Trabalhistas e Esporte da Anistia Internacional.
A Anistia Internacional escreveu à Fifa pedindo que ela confirmasse em que base a organização concordou com a Federação Saudita de Futebol para limitar o escopo da avaliação de direitos conduzida pela AS&H Clifford Chance.
Até agora, 12 de outubro, não soube de nenhuma resposta da entidade.
As três maiores críticas do relatório apresentado são:
- A AS&H Clifford Chance concordou com uma decisão da FIFA e da Federação Saudita de Futebol (SAFF) de efetivamente excluir a análise do histórico da Arábia Saudita em vários direitos humanos críticos.
- A avaliação fez uso altamente seletivo das descobertas de órgãos da ONU sobre a Arábia Saudita, deixando de fora julgamentos prejudiciais. Por exemplo, não faz referência à preocupação de um órgão da ONU em receber relatórios de que "tortura e outros maus-tratos são comumente praticados em prisões", ou outro que observa que "mulheres e meninas que são vítimas de abuso sexual correm o risco de enfrentar processos criminais se apresentarem queixa". Também não menciona que a Arábia Saudita está atualmente enfrentando uma queixa trabalhista na ONU movida pela Building and Woodworkers International, um sindicato internacional.
- Não há evidências de que a AS&H Clifford Chance tenha consultado especialistas externos
O relatório apresentado pelas entidades internacionais comprova que - apesar de todos os movimentos e políticas de proteção de direitos humanos- a associação da FIFA com países que não tem os mesmos compromissos segue forte.
Isso deixa evidente que a questão comercial tem mais força internamente que compromissos institucionais.
A verdade é que a Fifa precisa decidir se abraça ou não sua política de direitos humanos. A autorregulação não pode ser só propaganda institucional, precisa ser guia concreto de conduta.
As entidades de defesa de direitos humanos estão cobrando. E você?
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