Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Por 90 minutos de silêncio
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Assisti o título do Palmeiras na Copa do Brasil e, por 90 minutos, escutei a torcida gritar pelo time. Mas a torcida não estava lá.
Em algum momento da pandemia os clubes mandantes acharam que seria razoável colocar um DJ para simular o grito da torcida durante o jogo. Na ausência de público, na ausência da emoção, da gritaria, das músicas, do desespero verdadeiro por que não simular?
Certamente há quem goste, mas eu não sou uma dessas pessoas.
É de fato muito triste jogos sem torcida, mas, diante do que estamos enfrentando, essa é apenas mais uma das tristezas que teremos que encarar.
O que normalmente fazemos quando a vida complica é tentar criar a ilusão de que tudo segue bem. Numa sociedade de hipervaloriza a felicidade sucumbir à tristeza é sinal de fraqueza, é mimimi, coisa de gente fraca. Uma sociedade assim organizada gera crises de ansiedade, de depressão e de suicídio. Mas sobre isso melhor não falar: sobe o som.
Ver um jogo pela TV com estádio vazio é uma experiência em certa medida melancólica. Mas em jogos sem DJ a gente consegue escutar com muita precisão o som seco do chute na bola, o som penetrante de uma bola na trave, o barulho aveludado da bola que sacode as redes e até os gritos desesperados do técnico à beira do gramado pedindo - claro - marcação.
Não chega a ser esfuziante, mas é verdadeiro e hoje em dia as verdades, por mais duras que sejam, carregam com elas um fino contorno de beleza e de poesia.
Não sabemos lidar com o silêncio e tentamos, como podemos, preencher o vazio com barulhos fabricados: o das redes sociais, o de uma música, o da TV ligada sem que ninguém esteja prestando atenção.
Como ninguém conta pra gente que é no silêncio que a gente cria subjetividade, seguimos na ilusão de que o silêncio é perturbador - e de fato ele é porque é quando tudo silencia que a gente pode começar a entender.
O que estamos enfrentando, com tantas perdas, tantas despedidas, tanta desesperança e desamparo, vai demorar a passar. Teremos pela frente um ano difícil, desafiador, solitário e, se posso fazer uma previsão, ainda sem torcida no campo.
Com diz o ativista e pensador indígena Ailton Krenak: quando a gente se depara com um deserto, só nos resta atravessá-lo. Abandonados pelo governo federal, temos uns aos outros. E temos as artes, nas quais incluo o futebol, mesmo esse que estamos praticando: muito fraco e mal jogado.
Se não vão interromper os campeonatos (deviam), então que pelo menos me deixem com o som ambiente: vazio, melancólico e, eventualmente, cheio da beleza do barulho de um chute bem dado na bola.
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