Topo

Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O futebol tem voz de mulher

Renata Silveira estreou como primeira narradora de futebol da Globo - Reprodução/Instagram
Renata Silveira estreou como primeira narradora de futebol da Globo Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista do UOL

11/03/2021 14h32

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Viver em tempos brutos exige que sejamos capazes de olhar pelas frestas em busca de circunstâncias que nos deem alguma esperança em dias melhores.

A notícia que fez isso por mim no dia de ontem foi a estreia de Renata Silveira como narradora do grupo Globo. Ela fez sua estreia no SporTV narrando a goleada do Botafogo sobre o Moto Club pela Copa do Brasil e, por uma questão de superstição, meus amigos botafoguenses já não imaginam jogos sem a voz de Renata.

A possibilidade de uma mulher narrar futebol não tinha sido por mim cogitada até que um dia, nos corredores do SporTV quando eu era comentarista do canal, uma amiga apresentadora me disse que esse era seu sonho. Estávamos em 2006 e naquele momento foi como se alguém tivesse tirado um véu de meu rosto e eu, finalmente, pude enxergar.

A ideia de que jogos de futebol tinham que ter a voz de um homem estava bastante fincada em meu imaginário, eu nem me permitia pensar nada diferente. E é justamente esse um dos maiores problemas que enfrentamos atualmente - entre tantos grandes problemas: nossa imaginação está bloqueada.

Em 2006, ainda vivendo nesse outro mundo dentro do qual o futebol deve ter voz de homem, teve um diretor que ousou colocar essa minha amiga e eu apresentando um jornal noturno no canal.

Não me lembro quantas vezes fizemos isso juntas, mas lembro que um dia fomos avisadas que duas mulheres não poderiam mais apresentar um jornal esportivo juntas. Se não me engano a ordem fantasiada de pedido tinha vindo do departamento comercial: anunciantes estavam achando aquilo estranhíssimo.

Lembro que naquele momento eu pensei que a sorte de minha amiga narrando jogos estava lançada e não era uma boa sorte.

Para que uma mulher consiga derrubar um muro muitas outras antes dela precisaram tirar uns tijolos desse muro. Eu lembro de minha amiga me contando que havia diretores simpáticos a sua ideia, lembro quando ela me disse que já estava treinando para narrar e lembro que ela chegou a realizar seu sonho. Não com o futebol, mas narrando eventos esportivos.

Dizer que Renata Silveira tem talento é desnecessário: uma mulher só chega onde ela chegou tendo um transbordamento de talentos. O caminho é muito mais difícil para todas nós. Precisamos nos provar múltiplas vezes, precisamos ser mais do que boas, precisamos ser espetaculares no que fazemos para conseguir a chance de desbloquear imaginações.

Nenhuma transformação aconteceu porque os donos do poder um dia disseram: acho que já podemos deixar mulheres votarem. Ou: acho que podemos deixar mulheres comentarem. Acho que já é hora de uma mulher narrar. Não é assim que funciona. Funciona com insistência, com luta, com resistência, com união, com muita solidariedade.

Para cada muro derrubado, uma multidão de mulheres trabalhou longe dos palcos na retirada de tijolos que ninguém viu que estavam sendo retirados.

Ainda falta um tanto. Faltam mulheres negras, faltam mulheres trans, faltam mulheres que maior número.

Mas a gente chega lá. Não para que sejamos tratadas igualitariamente - isso é querer o mínimo - mas para formar uma sociedade que supere os marcadores de gênero, de raça, de sexo e de sexualidade.

Parabéns, Renata. Você me emocionou e me fez voltar a delirar com um mundo mais justo e menos dilacerante. Sua voz é a nossa voz e a cada grito de gol que você dá nasce em uma menina pelo Brasil o sagrado direito de sonhar.