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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Reação a erro de Gabigol mostra que o Brasil é um país punitivista

A nova tatuagem de Gabigol - Reprodução/Instagram
A nova tatuagem de Gabigol Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista do UOL

15/03/2021 13h03

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O que fazer com Gabigol, perguntam todos? O ídolo flamenguista foi flagrado em um casino clandestino durante a madrugada - e isso bastaria para que a gente saísse pedindo alguma punição ao jogador que não deveria, assim como qualquer um de nós, cometer contravenções. Mas tudo aconteceu em meio à pandemia, e a lamentável circunstância acrescenta ainda mais imoralidade ao ato.

Gabigol errou, vacilou, titubeou. E, claro, nossa sanha punitivista exige que ele de alguma forma pague pelo erro. Noves fora os que não enxergam problema no que fez Gabigol, o pessoal do grupo antifascista (onde me incluo) se divide em querer que ele seja multado, afastado ou advertido - ou tudo isso junto. Onde já se viu no meio de uma pandemia como essa frequentar cassino clandestino?

Eu acho que o episódio convida à reflexão.

A primeira que me passa pela cabeça é: do pobre que ascende exige-se o impossível. Ele precisa rebolar e se esticar como pode para se incluir nas normas de uma classe dominante que nunca vai aceitá-lo de fato. Se ele andar na linha, vai ser considerado cafona e desajustado. Se cruzar fronteiras que todos os dias muitos ricos cruzam alegremente, vai ser apedrejado com vigor inédito.

A gente se acostumou a repetir que somos o país da impunidade; uma frase que não se sustenta com um Google de três minutos: somos, na verdade, a terceira maior população carcerária do mundo e temos 700 mil pessoas presas. Dessas, mais de 60% é negra e 75% tem até o Ensino fundamental completo, um número que indica baixa renda. Mais grave ainda: quase 300 mil são presos provisórios: não julgados ainda.

Somos o país da sanha punitivista, isso sim. Somos um projeto de ódio que deu muito certo e que se renova a cada dia. Somos racistas, vingativos e capazes de aplaudir qualquer justiceiro que apareça usando das mais perversas, ilegais e imorais táticas e estratégias para prender aqueles que gostaríamos muito que fossem culpados de alguma coisa; de qualquer coisa.

Gabigol errou. Errou ao frequentar um casino clandestino, sem dúvida.

Minha mãe, aos 73 anos, foi flagrada de madrugada num bingo clandestino e foi levada à delegacia. Precisamos de um advogado para tirá-la de lá, quase 15 horas depois. A história é contada em família hoje e todos riem. A gente comete erros na vida - muitos. E com todos podemos aprender. Minha mãe nunca mais foi detida e jura ter abandonado o vício.

Não sou a favor de que Gabigol receba punições; sou a favor de que ele seja responsabilizado de alguma forma. E sou a favor de que ele receba instruções e educação a respeito do que estamos enfrentando.

"Todo mundo sabe que essa pandemia deve ser levada a sério", argumentam alguns. Não, não é todo mundo que sabe. Infelizmente temos na presidência um funcionário público que há um ano faz apenas negar a seriedade da pandemia, recomendar tratamentos comprovadamente ineficazes, encorajar aglomerações.

Palavras importam. Palavra ditas por uma pessoa que ocupa um cargo como o que Jair Bolsonaro ocupa ainda são ouvidas por uma parte da população. A verdade está em disputa e a guerra hoje é pela narrativa. A de um genocida e de seus financiadores está vencendo.

Para mim, mais do que frequentar um cassino clandestino, erro maior é afagar publicamente o presidente da república envolvido diretamente nesse genocídio que estamos vivendo.

Pois é: apenas o primeiro desses erros é considerado ilegal. O outro só caberia na caixinha do imoral.

Aí a gente precisa lembrar que o nazismo foi, durante um bom tempo, absolutamente legal - ainda que jamais tenha sido ético ou moral. A escravidão igualmente: era absolutamente legal, embora nunca tenha sido legítima.

Hoje é fácil olhar para trás e entender a imoralidade de atrocidades como nazismo e escravidão. Mas não é tão simples - parece - perceber o fascismo enquanto ele está em curso.

A vida é ao vivo, diz o ditado. Estamos no meio desse show tão lamentável protagonizado pelo governo federal e pela maioria dos governos estaduais e municipais. É agora a hora da gente se levantar e pedir consciência. É a hora da gente se desconstruir do que nos foi ensinado e reivindicar nossa verdadeira história: uma história de ódio de classe, de racismo, de sexismo.

Num mundo menos injusto, Gabigol seria chamado aos fatos.

Faria algum tipo de curso a respeito do que significa empatia, liberdade, justiça, consciência. Mas não apenas ele: todos e todas que flagradas em delitos teriam a chance de se reabilitar, de se reformar.

Quase 60% dos presos no Brasil têm entre 18 e 29 anos. São jovens que têm a vida inteira pela frente.

Se a gente divide a população entre corpos matáveis e corpos não matáveis fica fácil não ligar para essa gente que um dia sonhou em ser Gabigol, Adriano, Marta, Formiga. Mas se a gente entender que somos todos de um único tipo e merecemos as mesmas oportunidades, esse cenário é revoltante.

Para muitos, o futebol é a única chance de escapar dessa realidade social tão perversa que está sendo construída desde 1500. Gabi Gol escapou. Poderia ser exemplo se não estivesse preocupado em dar a mão a genocidas e furar a quarentena.

Um Gabigol investido de consciência de classe não tomaria essas atitudes. E eu não acredito que multar ou afastar o jogador vá de fato colaborar para que ele reveja suas atitudes fora de campo.

Então, se me permitem sonhar, sonho com uma escola reformista onde pessoas que cometam delitos aprendam sobre quem somos, sobre nossa verdadeira história, sobre o projeto de ódio que formou e organizou esse país, sobre a estrutura racista, machista e Lgbtfóbica que forma essa sociedade, sobre empatia, sobre amor e afetos.

Tudo isso (se você chegou até aqui meu muito obrigada) para dizer que acho que Gabigol deve sim ser responsabilizado de alguma forma.

E se multa e afastamento não vão mudar seu comportamento talvez a responsabilização possa se dar de um jeito criativo.

Ele poderia, por exemplo, ser obrigado a se manifestar publicamente dizendo "Eu errei, me arrependo, não façam o que eu fiz, a pandemia é séria, já matou quase 300 mil pessoas etc etc etc".

Sonhar é livre e desbloquear nossa imaginação é dever.

Talvez a gente exija demais daqueles e daquelas a quem damos quase nada. Quem sabe não seria essa a hora de nos educarmos todos juntos?