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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Um viva para todas as mulheres que nunca desistiram de jogar futebol

Marta e Cristiane na decisão do futebol feminino no Pan Rio 2007 - Joel Auerbach/Getty Images
Marta e Cristiane na decisão do futebol feminino no Pan Rio 2007 Imagem: Joel Auerbach/Getty Images

Colunista do UOL

14/04/2021 13h30

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A história da proibição de mulheres jogarem futebol no Brasil hoje pode parecer piada, mas foi coisa muito séria. O decreto-lei 3.199, de 14 de abril de 1941 - e que completa 80 anos hoje -, dizia: "Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país". Estava assim proibido não apenas o futebol, mas qualquer esporte considerado "não-feminino".

Aí você pode se perguntar: o que seria "feminino" e quem exatamente eram as pessoas que tinham o poder de decretar o que poderia e o que não poderia ser considerado adequado à "natureza de uma mulher".

O decreto não apenas impedia que mulheres jogassem profissionalmente, mas também escorria pela sociedade de modo a criar situações como a que vou contar agora.

Desde muito pequena meu maior prazer na vida era jogar bola. Quase toda criança que gosta de futebol começa jogando e não assistindo pela TV ou indo a um estádio. Então, eu passava o dia com meu ki-chute (cadarso amarrado na canela ou nas travas) e com uma bola debaixo do braço. Quando eu tinha sete anos minha família se mudou para São Paulo e fui matriculada numa escola de classe alta considerada uma das melhores do Brasil. Estava me alfabetizando, mas o que me atraía mesmo para o colégio era a hora do recreio, quando eu sabia que jogaria bola com os meninos.

Depois de algumas semanas, estava eu disputando uma partida quando duas professoras apareceram na quadra e me chamaram. Disseram que a partir daquele dia eu não poderia mais jogar bola e deveria brincar de bonecas "como fazem todas as meninas".

Me colocaram numa sala escura, onde estava sendo celebrado o aniversário de uma das bonecas. Muitas meninas cantavam e aplaudiam, e um bolo fictício estava sobre a mesa. Eu me recolhi a um canto e chorei. À noite contei aos meus pais o que tinha acontecido. Meu pai sempre foi um incentivador de meus talentos futebolísticos, mas minha mãe nunca foi fã então imaginei que ela fosse concordar com o que as professoras fizeram.

Eles escutaram a história sem dizer nada e no dia seguinte minha mãe me levou para a aula sem emitir uma palavra. Ao chegarmos, ela estacionou o carro e avisou que ia entrar. Me pegou pelas mãos e me levou a sala da diretora. Nem bom dia ela deu. Disse apenas: "Se minha filha quer jogar bola ela vai jogar bola e não são vocês que vão proibir". Não lembro da resposta, mas imagino que as professoras tenham sacado a cartilha da tal lei. Não funcionou e eu nunca mais deixei de jogar bola no recreio.

Lembro da alegria dos meninos quando voltei ao jogo, e lembro de ter me emocionado com a receptividade. Mas o episódio deixou marcas e me fez entender, pela primeira vez, que eu existia separadamente. O preconceito se internaliza como um veneno nas entranhas daqueles que são vítimas dele e nunca mais para de nos ferir.

O que é feminino e o que é masculino são características atribuídas aos gêneros e não forças da natureza. Crescemos aprendendo essa cartilha que aprisiona tanto mulheres quando homens, sempre encorajados a não mostrar sentimentos, a não chorar, a não se deixar atravessar. O machismo é uma arma que pode matar (mata mulheres todos os dias), mas que também se manifesta com muita potência nas coisas pequenas.

A lei federal que proibiu mulheres de jogar bola no Brasil durou 42 anos e caiu em 1983. O episódio que me arrancou da quadra aconteceu em 1978, e eu e tantas outras mulheres passamos todos esses anos jogando bola ilegalmente por aí.

Por tudo isso, quando em 2007 eu entrei no Maracanã para assistir a final do Panamericano de futebol feminino entre Brasil e Estados Unidos e vi o estádio lotado (eram 70 mil pessoas) eu sentei e chorei um dos prantos mais bonitos da minha vida. Aquele era um dia que parecia impossível para mim, mas, como ensina Vladimir Safatle, "o impossível é um lugar para onde não cansamos de andar, mais de uma vez, quando queremos mudar de situação. Tudo o que realmente amamos foi um dia impossível".

Um viva para todas as mulheres que nunca desistiram de jogar, para as que lutaram contra o preconceito a cada jogo, a cada lance, a cada tropeço. Para aquelas que, mesmo sem gostar muito de testemunhar a paixão de uma filha pelo futebol, enfrentaram professoras conservadoras para exigir que uma menina de sete anos continuasse exercendo esse amor em uma quadra poliesportiva de uma escola do ensino fundamental. Para que haja Martas, Formigas, Cristianes e Danielas precisou haver muitas outras antes que disseram: futebol é coisa de mulher porque coisa de mulher é tudo o que a gente quiser que seja, e a gente vai seguir lutando.