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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A violência múltipla do abuso contra uma mulher

Neymar aquece minutos antes de partida do Paris Saint-Germain na Liga dos Campeões 2020-21 - Laurence Griffiths/Getty Images
Neymar aquece minutos antes de partida do Paris Saint-Germain na Liga dos Campeões 2020-21 Imagem: Laurence Griffiths/Getty Images

Colunista do UOL

27/05/2021 23h36

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Acusações de abuso sexual são graves e precisam ser levadas em consideração. A escritora americana Rebecca Solnit, que trata muito do tema, diz que entre 3% e 5% das acusações são declaradas falsas depois de investigação. É um número pequeno, muito pequeno. Denunciar qualquer tipo de abuso sexual é, para a mulher, um caminho sem volta. É saber que seremos tratadas como culpadas pelo crime ("mas com essa roupa, você queria o quê?", "Foi para o quarto dele numa hora daquelas? Ah, tava querendo, né?"), seremos colocadas no banco dos réus, ameaçadas, ridicularizadas, agredidas. Perderemos nossos empregos, nossa privacidade, nossa sanidade. Por outro lado, claro, uma acusação falsa pode abalar a vida de um homem.

Acusar um homem famoso de abuso sexual aumenta toda essa via sacra em alguns decibéis. A reação imediata da opinião pública, infectada de machismo há séculos, é pensar: "Ah, que jeito fácil de tirar uma grana do cara!". Pois é: entre todos os jeitos mais complexos de dar um golpe em alguém, esse é, para uma mulher, o mais penoso, o mais humilhante, o mais dilacerante.

Só se vence essa batalha depois de morrer muitas mortes, de sangrar muitas feridas e, ainda assim, tendo a certeza de que nenhuma cicatriz se fechará em vida. Uma mulher não se recupera de um ato de abuso sexual, e a constatação mais devastadora é saber que, entre as mulheres que conheço, não há uma que tenha deixado de passar por algum tipo de abuso sexual. Por tudo isso, o número de casos que chegam a ser denunciados é mínimo, e o número de falsas acusações é extremamente baixo.

Provar um crime de estupro ou abuso sexual é complicado porque, normalmente, são apenas os dois envolvidos que estão presentes na cena do crime. Justamente por causa dessa dificuldade, a palavra da vítima vale muito e é usada como prova.

Se a Nike, em 2020, rompeu com Neymar um contrato longevo e sólido depois de ela mesma investigar a acusação de abuso sexual, como revelado pelo "Wall Street Journal" e confirmado pelo UOL, o caso ganha em gravidade.

Estupro é forçar uma pessoa a fazer sexo contra a sua vontade. Pode, ou não, envolver penetração. Pode, ou não, envolver gritaria, luta, tentativa de se desvencilhar. Um abuso sexual pode ser até o ato de tirar a camisinha no meio do sexo sem que a mulher perceba. É usar o corpo de uma mulher para qualquer finalidade que desrespeite sua vontade.

Simular faltas em campo é uma característica que irrita, mas que está longe de ser um crime. Sonegar imposto de renda, isso, sim, é crime. Posar sorridente ao lado de um presidente como Jair Bolsonaro não é exatamente um delito, mas é uma delinquência. Até ontem eram essas as maiores críticas que podíamos fazer a Neymar. Agora essa lista caiu a um segundo plano de imoralidades. Ser acusado de abuso sexual supera todas.

Violência sexual é, entre as perversidades que um homem pode cometer na vida, a maior, a mais indecente, a mais grotesca. No Brasil, uma mulher é estuprada a cada oito minutos e mais da metade das vítimas têm menos de 14 anos.

Violência sexual não é sobre sexo; é sobre poder. Um homem que força a mulher a fazer sexo com ele não quer gozar; quer mandar. Toda violência sexual fala da necessidade que nossa sociedade tem de exercer controle sobre o corpo de uma mulher. Trata-se de uma cultura, de um modo de vida, de um outro tipo de pandemia. Um amigo uma vez marcou um encontro com uma mulher que ele não conhecia e me disse: "Ah, eu vou. O que de pior pode acontecer? Ela ser chata e eu perder umas horas da minha vida". A lógica inversa não funciona para nós, mulheres. Um encontro com um desconhecido pode terminar em abuso, em estupro e até em morte. A gente não tem medo de perder umas horas da vida; tem medo de perder a vida. Escrevi mais a respeito do tema nesse texto em que falo da acusação de violência sexual que envolve Cuca, treinador do Atlético-MG.

Eu vi Neymar em campo quando ele tinha 14 anos. Saí de lá emocionada, com a certeza de que tinha visto um jogador fora de série sobre o qual falaríamos por muitos anos. Só não sabia que seria nesses termos. Que pena.