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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O futebol e a saudade daqueles que já partiram

Sócrates em atuação pelo Timão - Irmo Celso
Sócrates em atuação pelo Timão Imagem: Irmo Celso

Colunista do UOL

02/11/2021 12h40

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Duas pessoas em minha vida são as responsáveis pelo meu amor e pelo meu entendimento desse jogo, e nenhuma delas está mais aqui.

A primeira é meu pai. Ele morreu no ano 2000 e me deixou a consciência de que futebol é a instituição que melhor elabora a vida. Foi com ele que aprendi sobre tática, estratégia, técnica. Com ele também aprendi a torcer e - mais importante - a distorcer. Com ele compreendi que não se deixa o estádio antes do jogo acabar porque tudo pode mudar. E foi com ele que vi - e ouvi em seu radinho de pilha - muitas histórias mudarem quando parecia que não haveria mais como acontecer qualquer coisa. Meu pai era torcedor do Fluminense e por isso sempre que o tricolor joga eu me reencontro outra vez com o homem que tantas coisas me disse a respeito desse jogo, e de quem herdei, além da obra completa de Eça e Machado, a paixão pelo futebol.

A outra pessoa me deixou cedo demais, na véspera de completar 40 anos. Roberta foi a corintiana mais apaixonada que já conheci. E também a pessoa que conheci, ao lado do meu amigo são-paulino Mauricio Svartman, que mais entendeu de futebol. Não apenas de escalações, táticas, formações e estratégias, não apenas sabendo listar o time do Corinthians campeão do sub-17 em 1980, não apenas falando das coisas objetivas, mas também - e mais importante - das coisas subjetivas.

Rob, como eu a chamava, partiu um mês antes de o Corinthians se tornar Campeão Brasileiro em 2011; um mês, portanto, antes de seu maior ídolo: Sócrates. Tínhamos ingresso para o jogo contra o Palmeiras e das coisas mais difíceis que já fiz na vida foi ir àquele jogo sem ela, mas com o ingresso dela no bolso. Um acidente de trânsito a tirou daqui no dia 4 de novembro de 2011 e só ontem eu consegui abrir uma mala na qual guardava coisas que ela e eu compartilhamos durante nosso casamento.

Dentro da mala, ingressos equivalentes a quase dez anos de relacionamento, entre casamento e amizade: todos os jogos que fomos - e tem mais de uma centena de ingressos ali. Não contei quantos ingressos tenho em mãos, mas a pilha é enorme. Em 2008, por exemplo, fomos a todos os jogos. Eu já não lembro mais o placar dessas partidas, mas Rob certamente me diria o resultado, o minuto de cada gol e - mais surpreendente - o nome do trio de árbitros. Sua cabeça de engenheira fazia dessas mágicas, e eu sempre me comovia.

Ontem, quando Roger Guedes fez aquele gol ao 52 minutos de jogo, eu tive a certeza de que ela estava perto de mim. Eu a vi pular e gritar, como ela tantas vezes fez ao meu lado, em jogos que nada valiam, mas que para ela representavam a totalidade das coisas apaixonantes de uma vida. Um gol no finalzinho do jogo, um gol que dava ao time a vitória, fazia com que ela extravasasse um tipo de alegria que era absolutamente contagiante.

Hoje eu torço por duas e, a cada jogo do Timão, sou capaz de me reconciliar um pouco com ela e com a nossa história. Para onde vão aqueles que já foram? Não sabemos, mas, a depender do momento e do nosso estado de espírito, eu acho que eles nos dão o conforto de uma visita rápida, de um afago relâmpago, para tentar fazer a gente perceber a eternidade que existe no interior de um instante.

Obrigada, pai. Obrigada, Rob. O futebol não pulsaria em mim sem vocês. Um dia a gente se revê.