Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Milly: As SAFs são uma aberração
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A organização do futebol brasileiro não é reconhecida por ser boa, nem perto disso. Talvez nunca tenha sido sequer mediana. Há inúmeros problemas, há uma concentração quase absoluta de poder nas mãos de poucos homens, há interesses obscuros, há negociações estranhas, há magnatas demais.
Esse diagnóstico qualquer recém-chegado ao meio é capaz de fazer. Diante dessa constatação, fica evidente que é preciso mudar. O que me intriga é que a mudança aplaudida pela maioria é a de concentrar ainda mais poder na mão de um ou dois.
"Temos aqui um problema que é o de que tem pouca gente decidindo tudo sobre o meu time então a saída é fazer com que menos pessoas agora tenham a autonomia para decidir sobre os interesses do meu time". Faz algum sentido isso para você?
O que leva as pessoas a acharem que o caminho é o da concentração de poder e não o da socialização de poder?
Tento aqui uma resposta.
Somos, a todos os instantes do dia, levados a acreditar que o caminho para a liberdade é o da autonomia. É o de sermos capazes de fazer o que a gente quiser, como quiser, quando quiser. E que, para isso, precisamos ser gestores de nós mesmos. Empresários de nós mesmos. A única lógica aceitável é essa: deixar que a ordem empresarial nos guie. Quem obteve sucesso foi porque se esforçou, quem não conseguiu, bem, esforce-se mais.
As pessoas mais esforçadas que eu conheço são pobres e, por mais que trabalhem, nunca deixarão de ser pobres. Algumas das mais preguiçosas são riquíssimas e seguem acumulando fortuna com um clique no teclado do computador.
Mas querem que a gente acredite que a lógica empresarial precisa estar presente até em nossas vidas pessoais (a gente "investe" em relacionamentos, por exemplo), e também em todas as demais dimensões: nas escolas, nos hospitais, no Estado. Planilhas, números, custo-benefício, austeridade.
Se admitirmos essa premissa, me parece óbvio que o natural seja o futebol ir por aí. Mais gestão, menos paixão.
Isso é uma maluquice. Nem todas as coisas existem para dar lucro, para virarem negócios. O futebol - assim como escolas e hospitais - não deveriam existir para fazer com que algumas pessoas ganhem dinheiro. Essas coisas existem para dar vida e dar sentido à vida.
Futebol é berço de subjetividades. É onde muitos de nós nos reconhecemos enquanto pessoas. Um time não pode ter dono. Os únicos que deveriam se sentir donos de um time são seus torcedores.
"Ah, mas e essas dívidas? Como os clubes vão sair desse estado econômico miserável?"
Antes de mais nada é preciso entender que existe uma regra para que as coisas sociais sejam privatizadas: sucatear para vender. Não sou eu que estou inventando isso. Trata-se de uma prática de mercado. Antes de vender alguma instituição pública, a cartilha liberal manda sucatear. Por que? Porque assim um magnata, ou um poderoso grupo de magnatas, pode comprar barato.
Em segundo lugar, não é possível que só exista o caminho da privatização para "salvar" um clube - ou qualquer outra instituição. Mas eis aí outra engenhosa tática liberal: bloquear nossas imaginações apontando que a única saída moral é a da gestão empresarial. Tudo fica claro, planilhas serão transparentes. Fora dessa lógica só o caos, a barbárie ou, pior, o comunismo.
Jura mesmo? Vamos acreditar que a corrupção, o descaso, a negligência, a esperteza existe apenas nas coisas que tocam o público?
A já famosa "corrupção na Petrobras", detectada desde os anos 80, existiu sozinha, sem a participação de um cartel de empreiteiras?
O jornalista Ricardo Boechat ganhou um prêmio Esso de jornalismo na década de 90 com matérias que investigavam justamente essa relação promíscua entre o público e o privado e que envolviam a Petrobras.
Futebol é importante demais para ser entregue exclusivamente à esfera das coisas privadas. Futebol não é negócio. Futebol envolve paixão, entrega, autoconhecimento, socialização.
A saída para essa nossa miséria administrativa não é mais concentração de poder; é menos. Não é privatizar, é socializar.
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