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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Milly: De repente, um mundo sem Dorval e Desmond Tutu

Dorval defendeu a seleção brasileira em 13 jogos entre 1959 e 1963 - Acervo pessoal
Dorval defendeu a seleção brasileira em 13 jogos entre 1959 e 1963 Imagem: Acervo pessoal

Colunista do UOL

26/12/2021 16h49

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Eu me apaixonei ao mesmo tempo pelo futebol e pelos pontas. Meu pai me chamava atenção para Rivelino, Pelé, Gerson, Zico e Tita, mas meus olhos iam para Cafuringa, Zé Sérgio, Gil, Dirceu e Éder. Mais do que tudo, me interessava o que acontecia naquela parte do gramado.

Me interessava ver como alguns escolhiam o caminho mais longo em direção ao gol adversário. Que ousadia, eu pensava. E eles corriam e driblavam e faziam isso ao mesmo tempo. Pareciam enfeitiçados, possuídos por um deus malandro, por uma magia, por um encantamento.

Não vi Garrincha ou Dorval jogarem, mas aprendi que foram eles que reinventaram esse território dentro do gramado. Um território que hoje é ocupado de um modo já nem tão criativo, já nem tão irreverente. Um território onde, um dia, eles reinaram.

No futebol da eficiência, da lógica, da performance e da funcionalidade o ponta não cai assim tão bem. Mas como a vida é movimento eu acredito que essa fase da razão vai acabar encontrando um jeito de abrir espaço para a paixão, para a volta do ponta amalucado, do drible desvairado, aquele que acontece às vezes sem nenhuma outra intenção a não ser bailar, gingar, dançar e, com isso, fundar no campo um pouco do que não podemos explicar nem entender, apenas sentir.

Dorval e o arcebispo sul-africano Desmond Tutu, até onde sei, nunca se encontraram, mas compartilharam de uma mesma época nesse mundo onde a vida como a conhecemos existe a dezenas de milhares de anos. Existir durante a mesma época é bastante coisa. Eram homens de uma mesma geração, testemunharam os mesmos horrores e os mesmos conflitos.

Tutu, vencedor de um Nobel da Paz, foi o chefe da Comissão da Verdade e Reconciliação ao final do Apartheid sul-africano, em 1994.

"Durante meses sentou à mesa escutando o extrema-direita branca de seu país dizer o que fez e por que fez olhando nos olhos da população negra que foi vítima da barbárie do Apartheid", diz o perfil de Instagram @Descubraafricadosul por ocasião de sua morte.

"Foram encontros históricos e de alto teor emocional. Tutu, por vezes, ao escutar o que diziam os dois lados olhando um no olho do outro - brancos e negros, opressor e oprimido, violador e abusado, assassino e a família dos assassinados, colocava a cabeça entre as mãos e chorava copiosamente. As sessões, gravadas, estão numa sala no Museu do Apartheid em Joanesburgo. Fazem parte da história da humanidade, falam sobre o que temos de melhor e de pior, mas, mais do que isso, oferecem um caminho para a reconciliação, palavra que Desmond Tutu tinha na mais alta conta".

Talvez esses dois heróis se encontrem nessa última viagem, durante a grande e derradeira travessia. Quem sabe sobre os mistérios da morte?

O que sabemos com certeza é que nesse 26 de dezembro partiram dois dos grandes que já passaram por aqui. E, cada um a seu modo, colaboraram para que fôssemos maiores, melhores e mais alegres.

Termino com uma frase de Tutu:

"Nesse mundo lotado e frágil só podemos sobreviver juntos. Podemos ser verdadeiramente felizes, derradeiramente, apenas juntos. Podemos ser humanos apenas juntos".