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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Milly: Antes de venderem seu time vão te convencer de que isso é bom

Torcida do Botafogo no Engenhão durante partida contra o Cruzeiro - Luciano Belford/AGIF
Torcida do Botafogo no Engenhão durante partida contra o Cruzeiro Imagem: Luciano Belford/AGIF

Colunista do UOL

27/12/2021 12h14

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Dos mesmos produtores de "quando cobrarmos pela bagagem o preço da passagem vai cair" vem aí "a privatização do seu clube de coração é o caminho para o progresso do futebol brasileiro". A ideia, como muito bem elaborou a primeira ministra do Reino Unido, Margaret Thatcher é a seguinte: mais do que consolidar um modelo econômico, é preciso conquistar corações e mentes.

Reparem como não há debates abertos sobre a privatização dos clubes, as chamadas SAFs - Sociedades Anônimas Futebol - que recentemente puderam passar a existir no nosso futebol por causa de ajustes nas leis. As SAFs são celebradas como sendo muito boas, um caminho rumo ao desenvolvimento, a salvação do futebol e é isso.

É como fizeram com a reforma da previdência e com as flexibilizações das leis trabalhistas: o noticiário varia entre o "é excelente, já estava na hora" e o "É preciso ser feito, não há alternativa" - uma outra frase que a primeira ministra do Reino Unido amava repetir a respeito da retirada galopante de direitos dos cidadãos de sua nação: não há alternativa.

Aceitar que não há alternativa é aceitar que nossas ideias acabaram. Aceitar que o seu time de coração passe a ter um dono é dizer que essa camisa tem um preço. Tem? Quanto vale o seu time? Quanto vale sua paixão?

É sempre bom repetir que nosso futebol tem problemas graves e estruturais. Não se trata de dizer que do jeito que está, está maravilhoso. Longe disso.

O que busco é argumentar que, diante de um problema, a saída não pode ser apenas uma, aquela repetida a fartar por canais de comunicação, aquela celebrada por economistas e entendedores, aquela que parece, outra vez, apontar para a concentração de poder e de riqueza. Aquela que, em última instância, busca apenas uma coisa: o lucro. Futebol é isso? Uma plataforma para que algumas poucas pessoas enriqueçam mais e mais e mais? Ou futebol tem outros significados?

Não seria honesto se o debate incluísse também algumas ideias contrárias à privatização? Levantar perguntas como: "concentrar mais poder nas mãos de menos pessoas é a saída para a crise do seu clube?", "Qual o impacto da privatização no preço de coisas como ingresso, camisa, assinatura dos canais que vendem os jogos etc?", "Qual a relação entre privatização e exclusão das classes mais pobres da possibilidade de desfrutar desse esporte que se diz popular?". Não seriam essas questões válidas?

Porque a turma que apoia o liberalismo vai sempre dizer coisas como "o preço das passagens ainda não caiu depois que você, meu caro amigo, aceitou passivamente pagar para despachar suas bagagens porque falta ainda mais uma reforma, a última dessa vez, já que o governo não fez o que tinha que fazer, que não se sabe exatamente o que é, ou porque o sol continua se pondo, ou porque o certo seria cobrar pela bagagem e pela gasolina mas só fizemos a primeira parte etc etc etc"

Assim, fabrica-se um consenso: o de que a privatização dos clubes é a única saída e se seu clube for vendido é favor festejar.

Essa fabricação de consenso é uma lástima porque deixamos de explorar outras possibilidades, como, por exemplo, um projeto que em vez de entregar seu time a um único dono faça dele uma associação sem fins lucrativos que pertença a toda sua torcida. Loucura, dirão os que acham bastante saudável colocar preço num amor que é não pode ser medido.

Mas, a mesma sociedade que te convence de que só existe vida nas coisas privadas, também faz você acreditar que tudo o que importa é vencer, vencer e vencer. Quando a gente bem sabe que o amor que sentimos por um clube, ou por uma pessoa, ou por qualquer coisa, passa muito menos pelas vitórias do que pelas coisas difíceis que enfrentamos juntos.